Vigiar e punir (a grande farsa)
José Arbex Jr.
“O narcotráfico tem o seu braço na política, tem o seu braço na polícia, tem o seu braço no Poder Judiciário, tem o seu braço nos empresários, tem o seu braço internacional. Então, é uma coisa muito poderosa, que de vez em quando nós vemos na televisão: ‘Polícia consegue apreender a maior quantidade de cocaína já vista no Brasil’. Aí o que apresenta a televisão? Cinco ou seis ‘bagrinhos’. Para onde ia e de onde veio, quem vendeu e quem comprou a droga, não aparece. Aparecem os ‘bagrinhos’, ou seja, é sempre a mesma história. E nós só vamos combater o crime organizado quando a gente resolver pegar quem compra e quem vende, e não apenas quem está no processo de intermediação, que muitas vezes são pobres coitados, induzidos, para ganhar o pão de cada dia. Às vezes a gente ouve na televisão o seguinte discurso: ‘Tem violência? Tem. Vamos cercar a favela. Tem droga? Tem. Vamos ocupar a favela.’ Possivelmente, no dia em que a inteligência da polícia for mais ousada e mais forte do que a força bruta, a gente não precise invadir uma favela, mas, quem sabe, subir numa cobertura, numa das grandes capitais deste país, e pegar um verdadeiro culpado pelo narcotráfico.”
Assim falou Luiz Inácio Lula da Silva, em abril de 2003, num dos primeiros discursos após sua eleição. O então presidente tinha consciência de que o narcotráfico faz parte da indústria transnacional do crime organizado, comandada por banqueiros, empresários, juízes, policiais. Dados da ONU indicam que o narcotráfico movimenta algo em torno de 500 bilhões de dólares anuais e é o principal motor de redes de tráfico de armas, contrabando de bens de consumo e prostituição internacional, além de injetar capital líquido nas finanças mundiais (sem os narcodólares, a crise financeira aberta em 2008 teria atingido proporções ainda mais catastróficas).
Apesar de saber disso tudo, Lula, no ocaso de seu mandato, fez o oposto do prometido no nascedouro: em novembro de 2010, autorizou a participação da Marinha na operação destinada a reprimir os “bagrinhos” do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Lula deu carta branca à adoção de políticas violentas de segregação por parte dos governos estaduais e desmoralizou alguns avanços que o seu próprio governo promoveu, incluindo a transformação, em 2005, da antiga Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) para a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.
Políticas públicas dignas desse nome deveriam pressupor a adoção de um conjunto de ações sociais conformadas à história e ao significado social, cultural, político e econômico do consumo de drogas. Historicamente, o uso de drogas (incluindo álcool e tabaco) ganhou impulso com a formação das metrópoles industriais e se identifica com o parto da modernidade: basta lembrar Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Van Gogh, Oscar Wilde, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa, Sigmund Freud e mesmo Karl Marx. A cidade capitalista se desenvolveu como um imenso e ininterrupto centro gerador de impulsos nervosos: tudo nela demanda atenção e energia do corpo: trânsito, luzes, ruídos, tensão social, desejo.
A proibição do uso de drogas nasceu graças às correntes religiosas fundamentalistas protestantes. Nos Estados Unidos do final do século 19, os wasp (white anglo-saxon protestants) impulsionaram a campanha por sua proibição (incluindo o álcool), tendo como alvo as minorias (negros, imigrantes italianos, judeus, chineses e irlandeses), os intelectuais boêmios de esquerda e tudo o mais que consideravam a escória. Hoje, os fundamentalistas evangélicos agrupados no Tea Party (mas não só) cumprem essa função.
Em contrapartida, o uso de drogas também é estimulado pelas potências, sempre e quando isso for de seu interesse. O Império Britânico, por exemplo, foi o principal disseminador do tráfico de ópio na Ásia, pois contava com os seus dividendos para financiar a administração das colônias. Hoje, a CIA estadunidense protege o tráfico de ópio a partir do Afeganistão, como meio de financiar suas “operações clandestinas”, assim como se associou, nos anos 1980, aos cartéis colombianos da cocaína. A Casa Branca, portanto, desenvolve uma retórica pública contra as drogas, e ao mesmo tempo promove o seu uso por vias clandestinas.
Em geral, em qualquer parte do mundo, as políticas oficiais de controle do uso e comércio das drogas funcionam como meios de coerção social: há, sempre, muito mais pobres detidos do que cidadãos de classe média ou superior. No Brasil, quaisquer políticas públicas de combate ao narcotráfico deveriam, obviamente, incluir programas voltados para a melhoria das condições de vida dos habitantes dos morros e favelas: mais escolas, infraestrutura sanitária, hospitais e postos de saúde, mais campanhas esclarecedoras (como no caso do tabaco). Mas, para fazer isso, o Estado brasileiro teria que ser outro, e não a Casa Grande organizada contra a Senzala.
A mídia, finalmente, joga um papel fundamental nisso tudo, como formadora de consenso. A Rede Globo e os principais meios aplaudiram a “limpeza” no Complexo do Alemão, em 2010, motivados por interesses especulativos imobiliários, tendo em vista a Copa de 2014 e os Jogos de 2016. A operação estabeleceu um novo patamar de intervenção das forças policiais no Brasil, abrindo o caminho para operações como a “limpeza” da cracolândia paulistana, em 2012, e muitas outras ações de caráter higienista, em várias capitais. O alvo são sempre os “bagrinhos”, jamais os “tubarões”.
Lula tinha razão, em 2003: a História sempre se repete - inclusive quando era ele quem mandava. Isto é, se repete como farsa.
Um desafio do século XXI
O constante e persistente crescimento do mercado mundial de drogas ilícitas, que atinge a cifra astronômica de quase 900 bilhões de dólares ao ano, desafia a compreensão de pesquisadores, governantes, formuladores de políticas sociais, autoridades responsáveis pelos órgãos de vigilância e repressão e da sociedade como um todo. Trata-se de um panorama agravado pela indústria e comércio de medicamentos e substâncias como o álcool e o tabaco que, embora legalizadas, são fonte de grandes prejuízos para a saúde e para a vida social. No dossiê que agora apresentamos, o leitor poderá acompanhar o que pensam e produzem pesquisadores de cinco setores da Unifesp ligados ao tema.
Valquíria Carnaúba com colaboração de Ana Cristina Cocolo
Marcelo*, hoje com 39 anos, fuma maconha há seis. Do “baseado”, passou para o ecstasy, GHB (conhecido como “ecstasy líquido”), poppers e cocaína. Faz suas compras por meio de dealers, pois prefere pagar mais caro (cada 30ml de GHB custa entre R$ 150 a R$ 200) a correr riscos inerentes a contatos com comunidades e vendedores mais expostos à abordagem policial. Já Flávio* consome cocaína, ecstasy e, eventualmente, maconha, às quais tem acesso por meio dos amigos. Flávio garante não ser dependente: utiliza as drogas aos finais de semana e delas se vale para potencializar o prazer durante as relações sexuais.
A realidade de ambos é o retrato de um fenômeno global, o consumo de drogas, longe de ser recente ou mesmo restrito a classe social, gênero ou etnia. Durante a primeira década do milênio, o narcotráfico faturou, em média, 900 bilhões de dólares ao ano, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). A cifra é equivalente a 35% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro ou a 1,5% de toda a riqueza produzida no globo. Trata-se de um mercado extremamente dinâmico, sempre alimentado por “novidades” (como as metanfetaminas e as sintéticas, em geral) ou por ondas renovadas de consumo de drogas antigas (como a heroína e os opiáceos, atualmente responsáveis por 40 mil mortes anuais nos Estados Unidos).
O cenário é ainda mais grave quando se considera que o narcotráfico impulsiona e alimenta 40% das demais frentes de negócios mantidas pelo crime organizado, segundo a Unodc, com base em dados do final da década passada. As atividades, que incluem tráfico de armas, de pessoas e lavagem de dinheiro, entre outros, giraram 2,1 trilhões de dólares, ou seja, 3,6% do PIB global. Mas não é só. O narcotráfico ainda estabelece uma relação “cooperativa” com o mercado de drogas permitidas e socialmente aceitas, como o álcool e o tabaco, para gerar um quadro catastrófico para a saúde pública.
O Global Drugs Survey (GDS) desponta como uma ferramenta importante para compreensão do problema. Coordenado no Brasil por Clarice Sandi Madruga, psicóloga e professora afiliada da disciplina de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo, a coleta on-line feita pela pesquisa contou, em 2015, com a participação de 107.624 pessoas. O relatório final revela dados surpreendentes, que envolvem consumo de álcool, versões alteradas de ecstasy, baixo preço da cocaína e, principalmente, o uso da maconha sintética no Brasil.
Mercado promissor no Brasil
O estudo detectou pela primeira vez o uso de maconha sintética no Brasil. A droga nada tem a ver com a versão natural. “O spice (nome comercial) é uma versão da molécula do THC sintetizada em laboratório. Por se ligar a receptores cerebrais de forma diferente que a molécula original, aumenta em até 60 vezes as chances do indivíduo desenvolver dependência química e em 30 as de ter uma emergência médica após o uso”, afirma Clarice. Das 434 entradas de emergência em hospitais detectadas pelo estudo, 50,9% ocorreram pelo seu uso. É vendido em forma de óleo para cigarros eletrônicos ou como fertilizante da planta Cannabis.
Quanto ao álcool, os dados são alarmantes. “Comparado aos 21 países participantes do estudo, o Brasil fica abaixo apenas da Irlanda em indicadores como volume consumido e percepção de tolerância”. Cerca de 6,6% dos irlandeses do sexo masculino bebem mais de 10g de álcool para começar a sentir os efeitos da bebida, sendo que o limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), para consumo diário, é em média 30g. No caso do Brasil, esse número é apenas ligeiramente menor, em 6,3%.
O GDS 2015 também revelou que cada pílula de ecstasy (em média R$ 40,00), há muito desprovida de seu constituinte original, a metilenodioximetanfetamina (MDMA), agora possui altas concentrações de similares às anfetaminas, além de catinonas sintéticas, altamente neurotóxicas e com poder de dependência superior ao do crack. As internações por complicações médicas pelo uso foram de 0,9%, contra 0,3% detectados no GDS 2013.
O preço da cocaína brasileira é o mais baixo do mundo: em torno de R$ 50,00 o grama. O equivalente em crack também é barato – em torno de R$ 25,00, segundo órgãos brasileiros de entorpecentes. O “pó” também foi identificado como o mais potente, uma vez que o país apresentou os maiores índices de procura de serviços de emergência após o uso.
Em 2012, o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) apontou que cerca de 1,8 milhão de brasileiros consumiu a “pedra” pelo menos uma vez na vida, número que salta para 5 milhões quando tratamos da cocaína. “Desde então, a demanda aumentou. Com isso, o tráfico optou por trabalhar a cocaína (última etapa de purificação) para voltar ao estágio de pedra”, pontua Clarice.
“O único exemplo nacional de combate às drogas bem-sucedido é o do tabaco”, relembra. Com efeito, a comparação entre o Lenad 2006 e o 2012 mostra que a prevalência de fumantes diminuiu tanto entre adultos (de 20,8% em 2006 para 16,9%) quanto entre menores de 18 anos (de 6,2% para 3,4%). Entretanto, o GDS apontou que o cigarro eletrônico, mesmo sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), já é comercializado em território nacional e consumido por 5% dos usuários avaliados pelo levantamento. “O acessório tem potencial de introduzir o vício em consumidores que não começariam a fumar devido a cheiro ou restrições em ambientes fechados”, alerta Clarice.
O impasse se estende
As discussões sobre criminalização do porte, legalização e regulamentação das drogas devem se intensificar no Brasil, principalmente após a autorização da Anvisa para uso de maconha medicinal no país, concedida em março deste ano. Nossos personagens iniciais, por exemplo, têm opiniões distintas. Marcelo* defende apenas a legalização da maconha, pois já viu muitas pessoas “serem levadas pelo Samu” durante festas e outras que morreram de overdose, por exagerarem no consumo de entorpecentes. Porém, para Flávio*, o ideal é legalizar tudo. “A proibição não proporciona nenhum benefício fiscal ao Estado, que poderia investir em programas de prevenção com a tributação das drogas”.
O coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Dartiu Xavier, reforça que a proibição não diminuiu o número de dependentes, mas dificulta seu acesso a tratamento e prevenção. “O uso de substâncias ilícitas estimula uma carga enorme de estigma e preconceito”.
Maurício Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), afirma que a proibição gera um mercado ilícito gigantesco e, no caso brasileiro, extremamente violento, causando milhares de mortes todos os meses.
De fato, projeções do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/MJ) mostram que o número de presos por tráfico cresceu 339% entre 2006 (31.520 presos), ano de entrada em vigor da lei 11.343 (Tráfico de Drogas e Associação para o Tráfico), e 2013 (138.366 presos). No entanto, contribuem para esses números os presos por contrabando de cigarro e álcool, drogas legais em território nacional. Segundo o Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf), pelo menos 30% das vendas de tabaco no Brasil correspondiam, em 2014, a produtos ilegais vindos do Paraguai.
“Não estamos preparados para a legalização total e a economia das drogas é a grande responsável por isso. Sempre vai existir o traficante vendendo mais barato over the counter (ilegalmente). Superar esse fenômeno demanda a estruturação de uma verdadeira política de drogas, apoiada no tripé prevenção, tratamento e controle da oferta”, afirma Ana Cecília Marques, psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead).
“Outra medida imprescindível seria treinar e educar a polícia, que se trata hoje de uma instituição extremamente corrupta, que culpa o jovem em situação vulnerável e aquele com um ‘baseado’ no bolso, mas não prende o traficante”, complementa a coordenadora do GDS. Todos os profissionais consultados rejeitam a política de “guerra às drogas”. Para Fiore, abordar a questão no âmbito da Antropologia é entender o que a droga significa para o usuário, respeitando-se a diversidade. Mas Ana Cecília é enfática: “O meu direito é aquele que termina quando invado o seu. A partir do momento que estou sob efeito de algo e mudo meu comportamento, já passei do limite e posso ser um risco à sua vida”.
* os nomes dos personagens foram alterados para resguardar suas identidades
Uma nova ameaça à saúde pública
De acordo com pesquisadores da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), o aumento do consumo de drogas sintéticas tem sido um novo problema de saúde pública no Brasil e no exterior. Essa classe de drogas é composta por substâncias desenvolvidas a partir de alterações na estrutura molecular de substâncias previamente conhecidas e já proibidas, com o objetivo de burlar a lei, de modo que a sua comercialização possa ocorrer sem prescrições ou restrições legais. À luz da lei, essas substâncias ainda não são proscritas (proibidas), porém, sob o ponto de vista toxicológico, apresentam propriedades nocivas cujo impacto do consumo vem sendo estudado em vários países. O consenso é que estamos diante de substâncias neurotóxicas, com alto poder de dependência e capazes de causar importantes danos à saúde física e psicossocial dos seus usuários.

Colaboraram neste artigo
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Inpad/CNPq)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis)
Produtos cada vez mais potentes burlam a vigilância
Infelizmente, a indústria da droga está à frente na criação de derivados de produtos já proibidos. No Brasil, desde 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que fiscaliza setores relacionados a produtos e serviços que possam afetar a saúde da população brasileira, realizou 37 atualizações na Portaria 344/1998 (que trata dos medicamentos de controle especial), sendo a última em 2014, a partir da lista de 2012.
Muitos países vêm tentando manter suas listas de drogas proscritas atualizadas, mas o aparecimento de novas substâncias psicoativas, conhecidas como New Psychoactive Substances (NPS), tem sido mais rápido que os processos burocráticos de inclusão. Como consequência, uma grande quantidade de novas substâncias psicoativas sintetizadas não regulamentadas é mundialmente comercializada, inclusive por meio da internet. Na Europa elas são conhecidas como "legal highs" ou "smart drugs". Estudos mostram que tais substâncias estão se tornando facilmente disponíveis também fora do eixo Europa-América do Norte.
De acordo com o efeito dessas substâncias no sistema nervoso central (SNC), elas podem ser classificadas em três categorias: psicoestimulantes, canabinóides e alucinógenos.
As ATS (amphetamine-type stimulants ou estimulantes do tipo anfetamina) são compostos sintéticos estimulantes que compreendem o grupo das anfetaminas, metanfetaminas, metacatinonas e substâncias análogas ao ecstasy (MDMA). Após os efeitos agudos do consumo, os usuários podem apresentar alterações de comportamento que evidenciem a dependência da substância. É relatado o aumento do risco de suicídio causado pela depressão nos períodos de abstinência e, vale acrescentar aqui, 87% dos usuários de estimulantes apresentam sinais de abstinência com a cessação do uso.
Diversos análogos sintéticos ao Δ9-THC (Δ-9-tetrahidrocanabinol) foram desenvolvidos. Do ponto de vista toxicológico, essas novas substâncias podem ser até 100 vezes mais potentes. Os canabinóides sintéticos são comercializados misturados a ervas em produtos chamados de K2, Spice ou incensos herbais. Alguns nomes comerciais do Spice incluem: Spice Silver, Spice Gold, Spice Diamond, Spice Arctic Synergy, Spice Tropical Synergy, Spice Egypt, Zombie World, Bad to the Bone, Black Mamba, Blaze, Fire and Ice, Dark Night, Earthquake, Berry Blend, The Moon e G-Force 2,3.
Ignorando o potencial tóxico desses compostos e a restrição nos rótulos indicando “impróprio para consumo humano”, na busca pelos efeitos semelhantes aos obtidos com o uso de maconha, os usuários consomem esta droga colocando em risco sua integridade física e mental. Constatou-se que após o uso, um em cada 30 usuários buscou serviços de atendimento médico de emergência no último ano. A Cannabis sintética é a substância que mais tem levado os usuários a buscarem esses serviços. As consequências do uso envolvem aumento de risco para o desenvolvimento de quadros psicóticos e chances 60 vezes maiores para instalação da síndrome de dependência.
Entre outros, os efeitos clínicos adversos relatados com o uso de Spice ou K2 estão relacionados a alterações no SNC, tais como convulsões, agitação, surtos psicóticos, acidentes vasculares cerebrais (AVC), perda de consciência, ansiedade, confusão e paranoia ou no sistema cardiovascular (taquicardia, hipertensão, dor no peito e isquemia cardíaca).
Os canabinóides sintéticos disponíveis atualmente no mercado ficaram mais potentes que os naturais, implicando em maiores prejuízos à saúde física e mental dos usuários. O uso desses derivados sintéticos da maconha foi relatado por 1,7% da amostra brasileira no último ano, ficando atrás apenas da Polônia, Hungria e Nova Zelândia, onde a Cannabis sintética era legalizada até a data da coleta dos dados.
Nos EUA, relatos de aumento do uso dos serviços de emergência, suicídio e assassinato já foram noticiados em razão do uso de Cannabis sintética e as autoridades continuam a alertar a população para o risco de novas ocorrências. Iniciativas de alerta e prevenção foram implementadas e a venda da droga passou a ser criminalizada em diversos Estados americanos.
Até pouco tempo atrás, o composto alucinógeno sintético mais conhecido era o LSD, porém, a busca por uma substância com preço mais barato e sem restrições legais que reproduzisse seus efeitos, introduziu uma nova série de drogas alucinógenas que ganhou destaque. Uma nova substância, o NBOMe, que apresenta um mecanismo de ação muito similar ao do LSD, surgiu na Alemanha em 2003, mas atualmente já se apresenta com 11 variações. Comercializado em muitos países como se fosse LSD, o NBOMe é mais forte e tóxico que a dietilamida do ácido lisérgico. A concentração do princípio ativo encontrado em doses de NBOMe pode ser até 40 vezes mais alta que no LSD, dependendo da forma como é consumido.
Os efeitos da droga no organismo podem durar até 12 horas, quase o dobro da duração média do ácido lisérgico. Ela começou a ser consumida no exterior em 2010 e chegou ao Brasil em 2011. Desde 2012, a comunicação do número de mortes e a busca de serviços de emergência após o uso está em ascensão.

Entre 2013 e 2015, triplicou o número de usuários de ecstasy que buscaram atendimento médico de emergência no país
Dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II Lenad), realizado no Brasil em 2012, e do The Global Drug Survey 2015 Findings, que apresenta dados mundiais relativos ao consumo de drogas no ano de 2015, incluindo uma amostra brasileira, apontam que o consumo de ATS entre as mulheres foi maior que em anos anteriores, tanto quanto ao uso na vida como quanto ao uso no último ano. O uso de ATS pelo menos uma vez na vida foi referida por 4,1% da amostra, sendo 4,6% entre as mulheres e 3,8% entre os homens. As prevalências mais altas foram observadas entre os indivíduos de 25 a 34 anos (6,6%), solteiros (4,9%), com níveis mais elevados de educação (7,4%) e maior renda (13,6%). O uso da substância no ano anterior ao da realização da pesquisa foi referido por 1,6% da amostra, verificando-se que o consumo entre as mulheres (2,2%) alcançou o dobro do consumo entre os homens (1,1%). Observa-se mudança de faixa etária, sendo os mais jovens, aqueles entre 15 e 24 anos, os maiores consumidores (2,2%).
Com relação ao uso associado a outras substâncias, usar estimulantes aumenta em sete vezes e meia a chance de um indivíduo usar maconha e outras drogas ilícitas, e em vinte e uma vezes a chance do uso de cocaína.
A prevalência de consumo de inibidores de apetite a base de anfetaminas no Brasil, considerando o uso na vida, é a mais alta entre todos os países pesquisados, sendo 4,1% entre os homens e 6,4% entre as mulheres. Estes dados reforçam a urgência de atenção para o uso de estimulantes entre mulheres na nossa população.
Em 2015, 12,2% dos pesquisados relataram o uso de ecstasy (MDMA). Entre 2013 e 2015, triplicou o número de usuários de ecstasy que buscaram atendimento médico de emergência. Há que se considerar não só os casos de overdose, situações onde há a ingestão de grande quantidade de substância de uma só vez, mas também, a mistura de adulterantes altamente tóxicos, pois mesmo o consumo de pequenas quantidades pode levar o indivíduo ao atendimento médico de emergência. Como consequência desta experiência, 55,6% dos usuários reduziram o uso da substância e 22,2% diminuíram o consumo concomitante de álcool.
As intervenções de redução de danos partem de um conjunto de políticas, programas e práticas baseadas em evidências científicas, que tem por objetivo diminuir o impacto do uso de drogas lícitas e ilícitas, salvaguardando a saúde física, social e econômica dos usuários, de suas famílias e da comunidade.
Com relação às drogas sintéticas, uma estrutura conhecida como “legal party pills” passou a ser usada em alguns países como uma alternativa segura para o consumo. A estratégia consiste em limitar o uso a determinados ambientes, principalmente festas e eventos ligados à música eletrônica, pontos onde o usuário tem a possibilidade de testar a substância antes de consumi-la, evitando, assim, a ingestão de adulterantes desconhecidos potencialmente perigosos, e até mesmo fatais, encontrados nas drogas de rua. O teste é rapidamente realizado por meio de reações químicas, utilizando uma pequena quantidade da substância que vai ser consumida e alguns produtos reagentes. Atualmente, os kits de testagem podem ser adquiridos pela internet e usados em casa.
• Ronaldo Ramos Laranjeira, Clarice Sandi Madruga e Luciana Massaro – Uniad/Inpad
Festas rave estimulam uso entre jovens

Festa rave, local onde o ecstasy surgiu e se disseminou nos anos 1.990
Na década de 1980, o estilo musical eletrônico se popularizou na Espanha, em festas rave. No decorrer dos anos 1990, as festas tornaram-se frequentes entre os jovens de várias nacionalidades. Foi nesse cenário que o uso de ecstasy (MDMA – metilenodioximetanfetamina) teve seu início e disseminação. A partir de então, muitas outras drogas sintéticas passaram a ser consumidas, bem como surgiram outros cenários de uso.
As sintéticas se diferenciam das demais drogas, não apenas pela sua natureza e efeitos, mas também em relação ao perfil dos usuários. São predominantemente jovens, com boa inserção social e que adquirem as drogas em rede de comércio específico.
O ecstasy é uma das principais drogas sintéticas usadas atualmente. Estudos realizados pelo Nepsis sugerem que os jovens tendem a minimizar os danos da droga e os comportamentos de risco, como dirigir após usar e praticar relações sexuais sem preservativo. Os estudos mostram também que a percepção de risco pode ser um importante componente preventivo na tomada de decisões.
Vários pesquisadores da área ressaltaram a importância de ações de redução de danos em contextos de uso como forma de intervenção junto aos usuários do ecstasy e outras drogas sintéticas. Com o objetivo de minimizar os danos decorrentes do uso, existem iniciativas brasileiras de redução de danos em festas, como o Projeto Respire, da ONG É de Lei, idealizado por pós-graduandos da Unifesp.
• Ana Regina Noto - Nepsis
Problemas causados pelo consumo custam 7,3% do PIB
Além de ser a primeira causa evitável de doenças, o álcool traz relevantes problemas sociais, causando prejuízo nas funções laborativas, além de gastos com emergências clínicas e psiquiátricas decorrentes do seu uso. Essa característica está intimamente ligada ao fato de o álcool ser culturalmente aceito em diversas sociedades e de ser uma droga lícita, afirmam pesquisadores do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad). De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), estima-se uma perda de 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, em decorrência de problemas relacionados ao álcool, ou seja, cerca de R$ 372 bilhões em 2014. Incluem-se, entre outros prejuízos para a economia, os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com o tratamento de doenças associadas ao uso de álcool e às perdas da capacidade de trabalho em decorrência de acidentes de trânsito provocados por motoristas bêbados, desemprego e afastamento do trabalho custeado pela Previdência Social.

Colaboraram neste artigo
Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Unidade de Dependência de Drogas (Uded) e Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis), setores que são da Disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas (Dimesad)
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Inpad/CNPq)
47 milhões de anos de vida são perdidos por incapacitação, diz OMS
A dependência de álcool é um dos quatro principais problemas relacionados ao trabalho. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 47 milhões de anos de vida são perdidos por incapacitação atribuídos ao seu consumo. O número anual de mortes diretamente relacionadas à substância, em todo o mundo, é de 774 mil pessoas, além de sua associação com acidentes automobilísticos, episódios de violência e agressão, atividade sexual não planejada e conflitos com a lei.
O uso do álcool está presente na nossa estrutura social, estando relacionado a momentos festivos e religiosos e, nos tempos atuais, estimulado por interesses econômicos. É a substância psicoativa lícita mais consumida no mundo e também uma das mais prejudicais à saúde pública, tanto em termos de morbidade como mortalidade. Das mortes atribuídas ao álcool, quase metade deve-se a acidentes (como afogamentos, queimaduras, intoxicações e quedas) ou a atos deliberados de violência contra si mesmo ou outros. Segundo o Relatório Global sobre Álcool e Saúde de 2014 da OMS, o álcool é consumido praticamente em todo o mundo.
Segundo estimativas, pessoas com 15 anos ou mais consumiram em torno de 6,2 litros de álcool puro em 2010 (equivalente a cerca de 13,5g por dia). No Brasil, estimava-se, na época, um consumo total de 8,7L por pessoa. Homens consumiam 13,6L por ano e mulheres 4,2L. Eliminados os abstêmios, a média sobe para 15,1L de álcool puro.
O uso nocivo de álcool destaca-se entre os fatores de risco de maior impacto para a morbidade, mortalidade e incapacidades em todo o mundo, estando associado a quase 6% de todas as mortes. Além disso, 22% dessas doenças e incapacidades estão relacionadas a violências interpessoais.
O consumo nocivo de bebidas alcoólicas, especialmente durante os episódios de intoxicação, está associado ao risco para a perpetração de atos violentos, incluindo homicídios, crimes sexuais e violência familiar. O abuso de álcool por agressores e/ou vítimas está presente em 30% a 70% dos casos de estupro. Uma proporção bastante variável de mulheres abusadas sexualmente (30 a 55%) refere história regular de uso de álcool e de outras substâncias. Estudos apontam para uma grande frequência de abuso e dependência de álcool entre mulheres vítimas de agressão sexual familiar, segundo as quais seus agressores estavam sob a influência de álcool em 53,3% dos casos.
Uma pesquisa realizada pelo Centro de Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod), da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, apurou que adolescentes que bebem excessivamente são influenciados pelo consumo dos pais. A pesquisa envolveu mais de 500 pacientes entre 12 e 17 anos, dos quais 86% são do sexo masculino. Desses, 256 afirmaram ter parentes que também fazem uso abusivo de álcool. O estudo mostra ainda que 4,36% dos entrevistados referem o álcool como droga que mais consomem. Dos entrevistados que apontaram o álcool como droga principal, 22% começaram a beber aos 13 anos de idade e 15% aos 11 anos.
Os efeitos do uso nocivo de álcool representam um relevante fardo na economia, uma vez que geram gastos públicos para o sistema de saúde, judiciário e de outras instituições. Estima-se em 30% as taxas de absenteísmo e de acidentes de trabalho causadas por dependência de álcool na Costa Rica. Na França, os acidentes de trabalho ocasionados pelo uso de álcool atingem números que variam de 10% a 20% do total de acidentes dessa natureza ocorridos no país.
• Dartiu Xavier da Silveira, Thiago Marques Fidalgo, Adriana Moro Maieski, Claudia Chaves Dallelucci – Proad
Binge potencializa os efeitos entre os jovens
A gravidade das consequências do consumo de álcool depende da frequência e das quantidades consumidas. Um padrão de consumo de risco que tem despertado interesse internacional e que nos últimos anos começou a ser investigado no Brasil é denominado de Binge Drinking (BD) ou “beber em binge”. Esse padrão é caracterizado pelo consumo de, no mínimo, quatro doses de álcool em uma única ocasião por mulheres e cinco doses por homens. Os episódios de uso abusivo agudo de álcool não apenas têm influência na mortalidade geral, mas contribuem para desfechos agudos como acidentes e agressões. O BD está associado a maiores índices de abuso sexual, tentativas de suicídio, sexo desprotegido, gravidez indesejada, overdose alcoólica, quedas, gastrite e pancreatite.
O álcool é a droga mais consumida pela população brasileira e, apesar de ser uma droga lícita, sua venda e consumo não são permitidos para menores de 18 anos. Apesar disso, estudo realizado pelo Cebrid, em 2010, em uma amostra nacional de estudantes de ensino fundamental e médio nas 27 capitais brasileiras, evidenciou que não só os adolescentes bebem, como o seu padrão mais comum é o BD. Cerca de três em cada dez adolescentes relatou que este comportamento ocorreu pelo menos uma vez no ano anterior à pesquisa.
O fato de uma criança experimentar bebida alcoólica na infância, mesmo que apenas um gole, aumenta em quase 60% a chance de ela ser uma praticante do beber em binge na adolescência. Além disso, este comportamento está associado a questões parentais, como a falta de percepção de punição. Adolescentes que acreditam que não serão punidos apresentam 2,2 vezes mais chance de se engajarem em binge na adolescência. Além disso, ser filho de mãe que bebe com frequência e estar em uma escola particular também aumentam a chance desta prática. Por fim, é mais comum que o binge ocorra entre adolescentes mais ricos. A associação entre classe socioeconômica e binge é mais forte nas regiões norte e nordeste do Brasil.
O BD também é o comportamento de risco mais prevalente em baladas em São Paulo. Estudo realizado em 2013, entre baladeiros dos mais diferentes perfis, evidenciou que cerca de 30% dos entrevistados saiu do estabelecimento com dosagem no sangue equivalente à prática de binge. O BD, nas baladas, multiplica por 9, para homens, e por 5, para mulheres, a chance de que ocorra um “apagão”, ou seja, que eles não saibam o que ocorreu após a saída do estabelecimento, quando comparados a baladeiros que beberam, mas não praticaram o binge.
As festas open bar favorecem este comportamento em ambos os sexos. O fato de cobrarem uma quantia fixa (em geral, baixa) e permitirem que o frequentador beba quanto quiser, “até cair”, faz com que este se sinta compelido a ingerir o máximo que pode. É crucial, por isso, que a sociedade debata a adequabilidade deste tipo de festas.
• Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner – Cebrid
No Brasil, cresce a taxa de usuários frequentes
O Brasil tornou-se um dos principais mercados de substâncias psicoativas legais e ilegais. O aumento da renda per capita de uma nação é geralmente acompanhado por um elevado consumo de substâncias recreativas. Uma combinação de fatores, tais como uma indústria não regulamentada, um grande mercado e uma rede ampla e organizada de drogas ilícitas, pode levar a um resultado negativo e facilmente previsível. A obtenção de dados epidemiológicos é fundamental para estabelecer estratégias nacionais e locais para a prevenção, tratamento e controle do uso dessas substâncias.
No Brasil, como em muitas economias emergentes, há uma grande disponibilidade de álcool, graças à profusão de pontos de venda, à falta de regulamentação quanto a horários permitidos para sua comercialização e preços relativamente baixos. Embora as taxas de abstinência continuem idênticas nos últimos 6 anos (48% em 2006 e 52% em 2012, diferença não significativa), houve um aumento de 20% na proporção de bebedores frequentes (que bebem uma vez por semana ou mais), que subiu de 45% para 54%. Destaca-se um aumento maior entre as mulheres, de 29% em 2006 para 39% em 2012. Entre 2006 e 2012, houve um aumento significativo do consumo no padrão binge (5 ou mais doses na mesma ocasião), que passou de 45% para 59% entre bebedores.
Outra maneira de avaliar a forma como a população ingere álcool é calcular a distribuição do volume consumido: 5% dos adultos que mais bebem são responsáveis pela ingestão de 24% de todo álcool consumido por adultos e os 10% que mais consomem por 45%. A maioria (80%) da população bebe menos da metade (44%) de todo o álcool consumido no país e 20% bebem 56%.
O início do consumo do álcool na população jovem ocorre pouco abaixo dos 15 anos (3 anos antes da idade permitida por lei). Não há diferença entre os sexos na etapa inicial. Praticamente metade dos jovens consome álcool, e esta taxa é de 26% entre os menores de idade. Grande parte dos adolescentes e jovens que relataram beber fazem uso nocivo de álcool (em forma de binge).
A associação do consumo de álcool com violência é largamente conhecida. Contudo, a disponibilidade de dados referentes a este fenômeno ainda é escassa no Brasil. Na segunda edição do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), observou-se que 8% da população possuía pelo menos uma arma de fogo. Entre homens, a prevalência de andar armado era de 5% e esta proporção aumenta quando analisamos esse comportamento entre bebedores problemáticos (com abuso ou dependência de álcool), chegando a 10.3% entre adultos jovens (com menos de 30 anos de idade).
A proporção de homens que relatam terem se envolvido em alguma briga com agressão física, em 2015, aumenta exponencialmente quando são considerados fatores de risco, como uso de álcool e de substâncias ilícitas.
O consumo do álcool também aumenta a tendência a comportamentos agressivos, nas ruas e dentro de casa. A violência física na infância é um grande problema. Crianças que sofrem abuso precocemente têm maiores chances de desenvolverem doenças psiquiátricas e de se tornarem usuárias problemáticas de álcool e drogas ilícitas na vida adulta. O II Lenad constatou que dois a cada dez brasileiros já sofreram algum tipo de violência física na infância. Destes, em 20% dos casos a vítima relatou que o abusador havia ingerido alguma bebida alcoólica na situação de abuso.
Cerca de 6% dos brasileiros relataram terem sido vítimas de agressão física por seu parceiro(a). Observou-se relação com o consumo de álcool na metade destes casos.
• Clarice Sandi Madruga, Ilana Pinsky, Marcelo Ribeiro, Ronaldo Ramos Laranjeira, Sandro Mitsuhiro, Sergio Duailibi - Uniad/Inpad
Associação perigosa
A partir da década de 1990, aumentou o consumo de álcool associado a bebidas energéticas. Os primeiros estudos científicos controlados, em seres humanos e em animais de laboratório, sobre esta interação foram realizados no início dos anos 2000, pelos pesquisadores Sionaldo Eduardo Ferreira e Maria Lucia O. S. Formigoni. Eles demonstraram que as bebidas energéticas aumentam o efeito estimulante do etanol e potencializam a sensibilização (o efeito se torna progressivamente maior com uso crônico). Além disso, as bebidas energéticas induziram estimulação em animais que não apresentavam este efeito após a administração de etanol isoladamente. Se o mesmo ocorrer em seres humanos, o uso desta associação poderá levar a um aumento da proporção de pessoas com problemas associados ao uso de álcool. Usuários brasileiros relataram recorrer à combinação para reduzir os efeitos de sonolência e amplificar os efeitos estimulantes do álcool. Entretanto, foi demonstrado que embora a sensação subjetiva de embriaguez seja atenuada, os prejuízos na coordenação motora permanecem inalterados – ou seja há uma falsa sensação de estar menos bêbado, o que pode levar uma pessoa a julgar erroneamente que estaria em condições de dirigir ou realizar outras tarefas que requerem sobriedade.
Estudos realizados em outros países mostram que os sintomas de dependência surgem mais precocemente em jovens universitários que fazem uso de bebidas alcoólicas associadas a energéticos quando comparados àqueles que utilizam somente álcool em quantidades e frequência similares.
Medidas preventivas alcançam melhores resultados
O fato de o álcool ser uma substância legalizada e com poucas restrições quanto à sua comercialização contribui para a disseminação de uma falsa ideia de que ele não causaria sérios problemas. Além disso, apesar de haver uma legislação adequada, o mesmo não se aplica à sua fiscalização. A despeito de uma rigorosa lei de trânsito, que prevê punição para quem dirige sob qualquer nível de álcool no sangue, o Brasil ainda é recordista no número de acidentes e vítimas fatais associadas ao uso da droga.
As consequências desse uso são bem heterogêneas e variam em diversos países (questões culturais, econômicas, etc.). Segundo os dados do Relatório Global sobre Álcool e Saúde, da OMS, publicado em 2014, muitas destas mortes são decorrentes de acidentes, assassinatos ou suicídios e estão aumentando na maioria dos países monitorados. Além disso, na Rússia e em países do leste europeu, uma em cada cinco mortes de homens está relacionada ao uso de álcool, sendo esta substância associada a 8% das mortes de indivíduos entre 15 e 29 anos. Aproximadamente 3,3 milhões de mortes por ano, no mundo, estão relacionadas ao abuso de álcool, sendo 30% decorrentes de cirrose hepática.
No Brasil, alguns estudos indicam que 35% dos motoristas afirmam fazer uso de bebidas alcoólicas antes ou durante o ato de dirigir. Estudantes que ingeriram, pelo menos, uma dose de álcool tiveram uma chance quatro vezes maior de pegar carona com um motorista alcoolizado. Aqueles que relataram utilizar mais de cinco doses apresentaram uma chance cinco vezes maior de se envolverem em acidentes automobilísticos.
Os impactos do uso de álcool são consideráveis na sociedade. Por exemplo, há alguns anos, um grupo de pesquisadores da Unifesp analisou 726.429 internações hospitalares decorrentes do uso de substâncias psicotrópicas entre os anos de 1988 a 1999 e observou que o uso abusivo de álcool era responsável por 90% daquelas internações. Apesar dos dados alarmantes, segundo a OMS, até o início do ano 2000, somente 34 países adotavam oficialmente algum tipo de política para reduzir os danos provocados pelo uso do álcool. Existem poucas ações de prevenção com resultados comprovados cientificamente. O antigo modelo, baseado no amedrontamento, apresenta baixa efetividade e adesão.
As mais recentes linhas preventivas mostram melhores resultados na medida em que focam em habilidades, qualidade de vida e redução de riscos relacionados ao consumo. Na perspectiva de redução de riscos (potencial de dano), o projeto School Health and Alcohol Harm Reduction Project (SHAHRP), desenvolvido na Austrália pela professora Nyanda McBride, do National Drug Research Institute e adaptado na Irlanda do Norte, tem sido apontado como efetivo para mudança de comportamento e latência dos resultados ao longo dos anos. O projeto é conduzido por professores em dois anos subsequentes, com oito sessões/aulas no 1º ano e cinco sessões no 2º ano. As atividades são interativas e informativas, com técnicas de role-playing e exercícios de tomadas de decisões focadas na redução de riscos do álcool. No Brasil, com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o projeto SHAHRP foi adaptado e avaliado em escolas particulares, recebendo o nome de Programa de Estímulo à Saúde e Redução de Riscos Associados ao Uso de Álcool Aplicado a Ambientes Educacionais (Perae). No primeiro ano, o programa foi aplicado pela equipe do Nepsis em quatro escolas, atingindo 266 alunos do oitavo ano do ensino fundamental. Com apoio do CNPq, está em curso um estudo exploratório para avaliar as adaptações do programa para estudantes de escolas públicas.
Apesar de existir uma regulamentação sobre horário de veiculação de propagandas sobre bebidas alcoólicas, as restrições são limitadas e as sobre bebidas com menor concentração alcoólica, como as cervejas, são muito frequentes. Além disso, as propagandas apelam para supostas propriedades do álcool como facilitador da desinibição social, associando seu uso a situações alegres, de riqueza e forte apelo sexual. A advertência obrigatória sobre riscos à saúde é veiculada em poucos segundos, de forma acelerada e ineficaz.
Por ser uma molécula pequena (CH3-CH2-OH), o álcool penetra facilmente nos tecidos do corpo humano, afetando praticamente todos os órgãos e causando os mais diversos problemas, incluindo gastrite, úlceras, cirrose, vários tipos de câncer (esôfago, intestino), problemas cognitivos, de memória, demência, hipertensão, alterações ósseas, etc. O seu uso abusivo durante a gravidez pode causar danos irreversíveis ao feto, tais como malformações craniofaciais, redução de peso e perímetro cefálico ao nascer e, o mais grave, problemas cognitivos e retardo mental.
Um dos primeiros estudos nesta área resultou na tese de doutorado Álcool e Teratogênese (1981) de Vilma A. Silva, orientada por Jandira Masur (1940-1990), na época, docente do Departamento de Psicobiologia e que havia sido autora da primeira tese de doutorado defendida no Programa de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), em 1971, e uma das cientistas brasileiras pioneiras no estudo dos efeitos do álcool no sistema nervoso central. Foi desenvolvido sob sua orientação um estudo que mostrou não existir tolerância, mas sim sensibilização aos efeitos estimulantes do álcool. Essa linha de pesquisa foi continuada pelas pesquisadoras Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni e Isabel Marian Hartmann de Quadros, que, com diversos pós-graduandos, estudaram por mais de uma década, em animais, a importância da variabilidade individual no efeito estimulante do álcool. Assim como em seres humanos, alguns animais apresentavam efeitos estimulantes, reforçadores, mas outros não e isto pode ter uma importante relação com desenvolvimento do uso abusivo. Estes estudos ajudaram a entender as bases biológicas da dependência de álcool, um transtorno que atinge entre 10% e 15% da população adulta e traz muitas consequências deletérias à saúde física, mental e ao relacionamento social.
Para evitar problemas decorrentes do uso crônico de álcool, é essencial a sua detecção precoce e a oferta de intervenções breves – utilizadas para ajudar o usuário a reconhecer seus problemas e a motivá-lo a mudar seus hábitos. Esta é uma das principais linhas de atuação da equipe da Unidade de Dependência de Drogas (Uded) do Departamento de Psicobiologia, setor criado na década de 1980 por Jandira Masur e atualmente coordenado por Maria Lucia Formigoni e por José Carlos F. Galduróz. O desenvolvimento e validação, no Brasil, de um importante instrumento para detecção do uso de risco de álcool e outras drogas (Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test - Assist) associado à realização de intervenções breves, para adultos, foi desenvolvido na década de 1990 pela equipe da Uded em parceria com pesquisadores de diversos países, com o apoio da OMS, gerando alguns dos artigos mais citados na literatura da área. Na década seguinte, essas técnicas foram adaptadas para adolescentes por Denise De Micheli. De modo complementar às abordagens psicossociais, a equipe liderada por José Carlos F. Galduróz têm avaliado a efetividade de novas ferramentas farmacológicas para tratamento da compulsão de dependentes de álcool, tabaco e cocaína/crack.
O uso excessivo de bebidas alcoólicas e os problemas físicos decorrentes têm sido fortemente associados ao absenteísmo e aos inúmeros problemas de relacionamento no ambiente de trabalho e familiar. Em especial, a violência doméstica é um problema bastante complexo, que tem sido alvo de estudos do grupo coordenado por Ana Regina Noto.
• Ana Regina Noto, Denise De Micheli, José Carlos Fernandes F. Galduróz e Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni - Nepsis/Uded
Síntese dos resultados do II Lenad quanto ao consumo de álcool no Brasil
• Embora não tenha aumentado a quantidade de pessoas que bebem álcool no Brasil, houve um aumento do comportamento de uso nocivo.
• As mulheres são a população em maior risco, apresentam índices de aumento entre 2.006 e 2.012 e bebendo de forma mais nociva.
• Quase dois a cada dez bebedores consomem álcool de forma nocivas sendo bebedores abusivos ou dependentes.
• Houve uma diminuição no comportamento de beber e dirigir entre 2.006 e 2.012.
• Quase um a cada dez brasileiros possui arma de fogo, sendo que 5% dos homens andam armados. Este índice sobe para mais de 10% entre homens jovens bebedores abusivos.
• Quase um terço dos homens jovens bebedores abusivos já se envolveu em uma briga com agressão física no último ano. Este índice sobe para 57% entre os que também usam cocaína.
• Mais de dois a cada dez brasileiros relataram terem sido vítimas de violência física na infância. Em 20% dos casos, os pais ou cuidadores que agrediram haviam bebido.
• 6% dos brasileiros(as) sofreram violência doméstica no último ano. Em metade destes casos, o(a) parceiro(a) que exerceu a violência havia bebido.
• A depressão está associada ao beber problemático.
Fonte: http://inpad.org.br/lenad/
Principal causa de mortes evitáveis no mundo
Principal causa de mortes evitáveis no mundo
O tabaco é hoje a principal causa de mortes evitáveis em todo o mundo e está associado a aumento no risco de múltiplos problemas de saúde, como doenças cardiovasculares, respiratórias e diversos tipos de cânceres, afirma Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid). Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tabagismo é a principal causa de morte evitável no mundo. Dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca) mostram que 10% dos fumantes chegam a reduzir sua expectativa de vida em 20 anos. No entanto, o controle publicitário sobre o tabaco, ocorrido a partir de 1988, já reflete mudanças de comportamento bastante significativas, explicam pesquisadores do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad).

Colaboraram neste artigo
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) e Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad)
Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis)
Campanha reduz consumo no Brasil
Os danos do cigarro à saúde são amplamente conhecidos. Desde o estudo clássico de Doll e Hill, que comprovou a relação causal do cigarro com o câncer de pulmão, a literatura médica vem associando o tabagismo às mais variadas doenças. O cigarro é considerado o principal fator de risco modificável para as doenças do sistema cardiovascular, por estar intimamente relacionado ao processo de aterosclerose e seus desdobramentos. Além dos acometimentos letais, o tabagismo predispõe a uma série de doenças incapacitantes: fumar aumenta o risco de demências, como a doença de Alzheimer e a demência vascular, assim como acelera a piora de condições neurodegenerativas, como a esclerose múltipla.
Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço (SBCCP), o tabagismo associado ao uso de álcool aumenta em 20 vezes a chance de desenvolver algum câncer. O espectro de morbidade que o cigarro deflagra inclui doença pulmonar obstrutiva crônica, doenças autoimunes, disfunção erétil e menopausa precoce. O tabagismo passivo também é perigoso, especialmente na gestação, estando associado a sofrimento fetal e descolamento de placenta.
Uma importante estratégia de combate ao tabagismo é a restrição publicitária. No Brasil, medidas que regulamentam a veiculação de publicidade dos cigarros ocorrem desde 1988, com a implementação da obrigatoriedade da frase "O Ministério da Saúde adverte: fumar é prejudicial à saúde" nas embalagens de derivados de tabaco. A partir de então, outras medidas de grande relevância foram instituídas, como impressão de imagens agressivas nas embalagens de cigarro e proibição de publicidade em revistas, outdoors, televisão e rádio. O impacto de tais medidas é altamente significativo em níveis epidemiológicos: pesquisa da Organização Panamericana da Saúde (Opas), divulgada em 2013, aponta que um em cada três fumantes cessaram o tabagismo desde 1988, ano de início da restrição publicitária. Além disso, pesquisa do Ministério da Saúde de 2008 aponta que cerca de 65% dos entrevistados pensaram em parar de fumar devido à influência das imagens de advertência presentes nos maços de cigarros.
Um estudo de 2005 sobre custos diretos do tabagismo à saúde pública no Sistema Único de Saúde (SUS) revela dados alarmantes. Nele, foram mensurados custos totais e atribuíveis ao tabagismo para três grupos de doenças relacionadas ao uso de tabaco (câncer, doenças do aparelho circulatório e do respiratório) em indivíduos maiores de 35 anos. Foram considerados valores gastos com internações e quimioterapia (em caso de neoplasias). Dos cerca de 1,3 bilhão de reais gastos pelo governo federal para tratamento desses grupos de doenças, aproximadamente 338,7 milhões de reais foram atribuíveis diretamente ao tabagismo (27,6% do total). Relatou-se, ainda, que esses valores estão subestimados, por não considerar gastos municipais e estaduais. Além disso, os custos indiretos (diminuição de produtividade) e os custos intangíveis, como sofrimento dos pacientes e familiares, também não foram considerados.
A prevalência do tabagismo no Brasil sofreu uma queda substancial nas últimas décadas. Tal redução pode ser atribuída às ações desenvolvidas pelo Programa Nacional de Controle do Tabagismo e outros fatores de Risco de Câncer (PNCTOFRC), como restrição da disponibilidade, controle do marketing e comercialização, atividades educativas nas escolas, melhora no atendimento primário e controle do consumo em locais públicos e de trabalho. Dados disponíveis no Observatório da Política Nacional de Controle do Tabaco, do Inca, mostram que, em 1989, 34,8% da população acima de 18 anos era fumante, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN). Uma queda expressiva foi observada no ano de 2003, segundo a Pesquisa Mundial de Saúde (PMS), no qual o percentual observado foi de 22,4%. No ano de 2008, a Pesquisa Especial de Tabagismo (Petab) apontou 18,5% de fumantes e, em 2013, o índice total de adultos fumantes foi de 14,7%, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS).

Thiago Marques Fidalgo com a equipe do Proad
A regulamentação publicitária, como já descrito, teve papel importante nos resultados encontrados. Em estudo realizado entre adolescentes dos 11 aos 18 anos, foi encontrada em apenas sete anos uma diminuição de 24% do uso dos derivados de tabaco. A proibição total do fumo em ambientes fechados de uso coletivo, privados ou públicos, foi aprovada por 71,1% da população que participou de uma consulta pública de 2007, evidenciando o interesse da população em promover ambientes saudáveis. Em pesquisa realizada um mês após a implementação da lei, o apoio foi de 94%, com aumento de cerca de 30% na procura de tratamentos para abandonar o uso.
• Dartiu Xavier da Silveira, Thiago Marques Fidalgo, Cláudio Augusto Bernardelli de Gaspar, Marcelo Polazzo Machado, Mariana Pimentel Padua do Lago, Vitor Soares Tardelli - Proad
Também os jovens fumam cada vez menos
Um estudo comparativo das tendências no uso de tabaco entre adolescentes brasileiros identificou uma redução significativa em 9 das 10 capitais de Estados brasileiros investigadas nos últimos 20 anos, tendo atingido suas menores prevalências históricas em anos recentes. A maior queda foi encontrada em Fortaleza, onde o predomínio era de 23% em 1993 e chegou a 8% em 2010.
Essa queda ocorreu muito provavelmente como reflexo das ações de ponta do Brasil no controle do tabagismo, tendo sua liderança no processo de elaboração da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco, da Organização Mundial da Saúde, refletido na mudança radical da legislação brasileira para esse tema.
A referida convenção, um marco na história da saúde pública mundial, sugere medidas restritivas nas áreas de publicidade, patrocínio, tabagismo passivo, comércio, preços e tratamento para fumantes, reduzindo, assim, tanto a oferta, quando a demanda de tabaco e estipulando regras claras para o consumo em ambientes públicos.
No entanto, apesar da importante queda no consumo de tabaco entre brasileiros nos últimos anos, em decorrência da sólida política antitabagista, que engloba especialmente a proibição de propagandas e ambientes livre de fumo, o tabaco ainda tem um impacto significativo na saúde pública brasileira, sendo a segunda droga mais consumida pela população, perdendo espaço apenas para o álcool.
Fatores psicossociais diversos têm sido associados ao início do uso de cigarros por adolescentes, incluindo a pressão dos colegas, falta de supervisão dos pais, tabagismo dos familiares próximos e atividades noturnas de lazer. Estudo brasileiro realizado com estudantes da cidade de São Paulo evidenciou que cerca de 4% dos estudantes de ensino médio reportaram uso pesado de álcool, isto é, consumo em 20 dias ou mais nos últimos 30 dias, enquanto cerca de 14% deles declarou ter fumado pelo menos uma vez nesse mesmo período.
Ser mais velho e estar exposto a fumo passivo em casa aumentou em cerca de 70% a chances de um adolescente paulistano ter relatado uso recente de tabaco. Adolescentes que reportaram constante frequência a festas e baladas tinham de 9 a 14 vezes mais chance de fumar do que os que saíam com menor frequência para esses eventos. Para as meninas, os dados sugerem que o consumo recente de tabaco esteve também associado a uma percepção de falta de atenção e cuidados dos pais e ausência de frequência a práticas religiosas.
Por fim, destaca-se um esforço do governo nos últimos anos na divulgação de serviço integral de tratamento do tabagismo em todas as regiões do Brasil. Por meio do número de telefone 136, a população pode ser informada sobre formas e motivos para abandonar o consumo de tabaco e locais de tratamento no Sistema Único de Saúde mais próximos de sua moradia.
• Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner – Cebrid

Dependência desafia programas
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 17,1% das pessoas de 15 anos ou mais fumam cigarros no Brasil, sendo que 85,4% delas o fazem diariamente. Desemprego, baixo grau de escolaridade e poder aquisitivo, idade entre 30 e 59 anos, foram fatores associados ao maior risco de fumar. Apesar das estratégias do governo brasileiro de combate ao tabagismo terem avançado nos últimos anos, os dados ainda confirmam o considerável impacto que o consumo do tabaco tem na saúde pública. Embora a maioria dos fumantes declararem intenção de parar de fumar, apenas cerca de 3% conseguem sem ajuda formal.
O tratamento foi padronizado e disseminado no país. Apesar dos avanços conquistados, as recaídas ainda são bastante frequentes no processo de tentativa de parar de fumar. Assim, o programa de prevenção de recaída (PR), desenvolvido por Marlatt e Gordon (1993), passou a ser uma importante ferramenta terapêutica.
Um dos mais recentes avanços da prevenção de recaídas é a incorporação de práticas de Mindfulness Based Relapse Prevention (MBRP). Mindfulness é a habilidade de manter atenção plena que pode ser desenvolvida por práticas baseadas em conhecimentos orientais de meditação. Estudos clínicos indicam que o MBRP apresenta resultados superiores aos de abordagens de prevenção de recaída tradicionais. No Brasil, a nova abordagem está sendo estudada pelo MBRP-Brasil, um núcleo de pesquisas vinculado ao Nepsis, do Departamento de Psicobiologia, que visa o desenvolvimento de pesquisas e formação profissional. Com apoio da Fapesp e do CNPq, estão sendo concluídos os primeiros ensaios clínicos de efetividade do MBRP entre fumantes. Os resultados são positivos na medida em que indicam a aceitação pela população e melhores índices de resposta ao tratamento. O MBRP também está sendo avaliado como alternativa para mulheres com insônia em uso crônico de benzodiazepínicos. Os resultados também têm sido promissores, tendo o MBRP como adjunto ao processo de redução ou retirada da medicação.
• Ana Regina Noto – Nepsis
Educação continuada capacita profissionais
Ao longo de quase duas décadas, por meio de cursos presenciais ou a distância, pesquisadores da Unifesp preparam milhares de agentes de saúde e assistentes sociais, além de líderes religiosos e comunitários, para lidar com os problemas associados ao uso de álcool e outras drogas

Ana Cristina Cocolo
Para identificar problemas relacionados ao consumo de álcool ou de outras substâncias psicoativas é preciso preparo e formação específica. No entanto, essa condição ainda está longe de ser encontrada em muitos serviços de saúde do país, sejam eles públicos ou privados. A formação insuficiente dos profissionais e o estigma acerca do tema prejudicam não apenas a prevenção e a identificação correta e precoce, como também a aplicação de intervenções breves e o encaminhamento para serviços especializados.
A Unifesp, na qual atuam alguns dos mais renomados pesquisadores brasileiros em drogas, contribui significativamente para a produção científica nessa área e para a formação de recursos humanos voltados à pesquisa e à assistência. Há mais de 20 anos são ofertados, além de programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) e lato sensu (especialização), diversos cursos de aperfeiçoamento e extensão, presenciais e a distância – alguns deles em parceria com os governos municipal e federal –, para profissionais de saúde ou de assistência social e líderes religiosos e comunitários.
Entre artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado produzidos na Unifesp, resultantes inclusive de trabalhos desenvolvidos nesses cursos, é possível encontrar no Repositório Institucional da universidade quase 2,5 mil produções acadêmicas que têm como palavras-chave álcool ou drogas. Já no sistema Google Acadêmico, essas referências ultrapassam 12 mil citações.
Supera: 10 anos e 500 mil inscritos
Prestes a completar uma década em sua 10ª edição – cujo início está previsto para agosto de 2016 -, o curso Supera (Sistema para Detecção do Uso Abusivo e Dependência de Substâncias Psicoativas: Encaminhamento, Intervenção Breve, Reinserção Social e Acompanhamento) foi criado a partir da cooperação entre a Unifesp e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), órgão integrante do Ministério da Justiça, visando à capacitação de profissionais das áreas de saúde e assistência social na identificação e abordagem dos usuários de álcool e/ou outras drogas.
O Supera, coordenado por Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni, docente do Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) - Campus São Paulo, foi formulado pelas equipes dos seguintes órgãos da citada unidade universitária: Unidade de Dependência de Drogas (Uded), Departamento de Psicobiologia e Departamento de Informática em Saúde (DIS), contando ainda com a colaboração de pesquisadores especialistas de diversas universidades federais (UFRGS, UFPR, UFRJ, UFJF e UFBA). Oferecido gratuitamente na modalidade de educação a distância (EaD), o Supera obteve desde sua 1a edição o apoio logístico da Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa (Afip), que até hoje disponibiliza alguns de seus funcionários e provê o imóvel que serve de sede ao projeto e à Uded. A procura por esse curso é grande e chegou a ter, em uma única edição, 100 mil inscritos para as 20 mil vagas disponíveis. No total, cerca de 500 mil pessoas já se inscreveram para as 100 mil vagas abertas, com índices de conclusão entre 40% e 80%.
Abrangente em seu conteúdo e organizado em sete módulos temáticos, o curso atualmente é oferecido na versão digital, com textos e vídeos que apresentam exemplos de intervenção para diversos perfis de usuários. Os profissionais cursistas participam ativamente de fóruns para discussão de temas específicos e de casos clínicos, moderados por tutores que podem responder às dúvidas e prestar orientação quanto à aplicação de instrumentos de triagem e de intervenções breves. São preparados para atuar de modo articulado com profissionais das redes de atendimento psicossocial, utilizando os conhecimentos adquiridos em seus locais de trabalho. A carga horária sugerida é de 120 horas, estipulando-se que os participantes que concluem o curso com pelo menos 70% de aproveitamento estão aptos a receber o certificado de extensão universitária registrado na Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (ProEc) da Unifesp.
Programa de Habilidades para a Vida (PHAVI) – Foco nos adolescentes em situação de risco
Em seu terceiro ano de vida, o Programa de Habilidades para a Vida (PHAVI) pretende capacitar mais de 120 profissionais das áreas de assistência social e educação dos núcleos socioeducativos e centros educativos, ligados à Prefeitura de São Paulo, na prevenção contra o uso de drogas entre adolescentes em situação de risco. O programa é uma parceria do Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp – por meio do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) – com a ONG Sociedade de Amparo Fraterno Casa do Caminho (Safrater) e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads). O curso é presencial, com carga horária de 40 horas, fornecendo certificado de conclusão emitido pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (ProEc) da Unifesp. Em 2010, o PHAVI foi premiado pela Senad e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Centros Regionais de Referência (CRRs) – Cebrid e Nepsis atuando em diferentes regiões
Lançados em 2011 e articulados pela Senad, os Centros Regionais de Referência (CRRs) oferecem cursos de formação presencial, com carga horária que varia de 60 a 80 horas, destinando-se a profissionais da rede pública de saúde em diferentes localidades do país. A responsabilidade pela cobertura do município de São Paulo cabe ao CRR coordenado pela Prof.ª Dr.ª Ana Regina Noto, da disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas, pertencente ao Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp. O público-alvo são trabalhadores e lideranças comunitárias que atuam com usuários de substâncias psicoativas e seus familiares nas redes públicas de saúde, desenvolvimento e assistência social, direitos humanos, educação, justiça e segurança pública. Entre 2013 e 2014, foram contemplados 200 profissionais no município e, em 2016, estão sendo oferecidas 400 vagas. Os cursos variam do nível básico ao especializado e procuram atender às demandas específicas de hospitais e escolas, entre outras entidades, para a articulação em rede. Destaca-se ainda o curso de Tratamento Comunitário, que - apoiado pela Unidade Avançada de Extensão Universitária de Santo Amaro da Unifesp - é dirigido a profissionais daquela região da cidade. Todos os cursos envolvem projetos de estudo, coordenados pelos pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis), visando ao desenvolvimento de novas metodologias de ensino na área, bem como à geração de conhecimento sobre as redes de atenção. No caso do tratamento comunitário, os estudos buscam analisar uma nova lógica de cuidado baseada nas redes da própria comunidade.
www.brasil.gov.br/observatoriocrack/prevencao/centro-regionais-referencia.html
Compete ao CRR/Cebrid/Unifesp efetuar a cobertura das demais áreas da Grande São Paulo, mediante a oferta de cursos coordenados pela equipe do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), cujo número de vagas totalizou 280 até o momento. O Cebrid foi criado por Elisaldo Carlini, médico e professor do Departamento de Psicobiologia, funcionando atualmente no Departamento de Medicina Preventiva da EPM/ Unifesp.
Fé na Prevenção – Foco em líderes comunitários e religiosos
O curso Prevenção do Uso de Drogas em Instituições Religiosas e Movimentos Afins – Fé na Prevenção também foi desenvolvido pela Uded em parceria com a Senad. Disponibilizado gratuitamente na modalidade de ensino a distância, com certificação de extensão universitária, é dirigido a lideranças religiosas e comunitárias. Mais de 15 mil lideranças de todos os Estados do país foram capacitadas para atuar na prevenção do uso de drogas psicotrópicas e de outros comportamentos de risco, bem como na abordagem de situações que requerem encaminhamento às redes de serviço.
Entre os diversos temas abordados no curso incluem-se: aspectos socioculturais, classificação e efeitos das principais drogas de abuso, técnicas de prevenção e detecção precoce, intervenção breve, entrevista motivacional e encaminhamento.
Uniad: 15 anos e 3 mil formados
Há mais de 15 anos, a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), do Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp, mantém cursos de especialização lato sensu (presenciais e na modalidade de ensino a distância) na Unifesp, direcionados a agentes responsáveis pela elaboração de políticas públicas e a profissionais de saúde que atuam no atendimento a pacientes ou familiares de dependentes de álcool, tabaco e outras drogas. Os cursos constam de quatro módulos, com carga horária de 400 horas-aula, e já formaram mais de 3 mil alunos em todo o país. Oferecem conhecimentos de ponta sobre os diferentes aspectos da dependência química, tendo por base a mais recente literatura internacional, combinada com a larga experiência de um corpo extremamente qualificado de profissionais.
Especial • Drogas
Um desafio do século XXI
Álcool
Problemas causados pelo consumo custam 7,3% do PIB
Maconha
Um mercado de 300 bilhões de dólares
Tabaco
Principal causa de mortes evitáveis no mundo
Drogas sintéticas
Uma nova ameaça à saúde pública
Políticas públicas
Participação da universidade é decisiva no país
Um mercado de 300 bilhões de dólares
A maconha é a substância ilícita mais consumida no mundo. Seu mercado ilegal movimenta cerca de 300 bilhões de dólares por ano, recursos que financiam violência e corrupção. Lucas Maia, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), afirma que legalizar a maconha seria, portanto, privar o crime organizado da sua maior fonte de lucro, ao mesmo tempo em que diminuiria riscos à saúde dos usuários, pouparia gastos com a repressão e arrecadaria recursos para serem investidos em setores como saúde e educação. Essa discussão, porém, ainda está longe de acabar.

Colaboraram neste artigo
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Inpad/CNPq)
Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Unidade de Dependência de Drogas (Uded)
Erva é cultivada há dez mil anos
A maconha foi um dos primeiros produtos agrícolas a serem cultivados. A relação do homem com a planta ultrapassa 10 mil anos. Ao longo da história, suas propriedades foram exploradas de muitas maneiras distintas, desde o uso da fibra de cânhamo para produção de têxteis até o uso terapêutico das resinas de suas flores e folhas superiores, datado há 5 mil anos. Em 1839, o médico irlandês William O’Shaughnessy publicou o primeiro relato científico do potencial da maconha como agente anticonvulsivante, trazendo grande interesse ao estudo de suas propriedades terapêuticas.
Até o primeiro terço do século XX, as propriedades medicinais da Cannabis figuravam nas páginas das farmacopeias de diversas nações. Contudo, por interesses comerciais associados à discriminação racial e étnica, criou-se uma campanha de difamação pública e especulativa da planta, a fim de abolir seu uso industrial, terapêutico e sociocultural. A veiculação extensa de campanhas nacionais e internacionais, principalmente estadunidenses, para estabelecimento de uma opinião pública negativa a respeito da planta ocorreu de forma leviana, distante das evidências científicas, e desproporcional aos efeitos adversos do uso da planta que, sabidamente, não leva à morte.
A proibição da maconha (e de todas as outras drogas consideradas ilícitas), desde então, atua como barreira para o conhecimento científico da planta e seus usos em potencial. Também trata como contraventores, passíveis de punição, todos os envolvidos com a produção, comércio e consumo da substância. Dessa forma, falha ao tratar o usuário como criminoso por consumir, o produtor por plantar, o comerciante por vender, além de negligenciar e estigmatizar aqueles que necessitam de atenção devido ao uso problemático.
A proibição ainda dificulta a produção científica a respeito de usos terapêuticos, comerciais, eventos adversos e tratamentos para o uso problemático. No âmbito da saúde pública, o veto gera mais danos, com o encarceramento excessivo e mortes, do que benefícios, ou seja, a falência desta política está posta, visto que o bem jurídico que a inibição busca proteger é justamente a saúde pública.
A lógica proibicionista tem consequências assimétricas sobre a população. A lei prevê tratamentos distintos para usuários e traficantes, com maior severidade na punição dos últimos. No entanto, a distinção entre os dois é feita de forma arbitrária, baseada sobretudo nas circunstâncias sociais e pessoais do réu, em um mecanismo pernicioso em que se invertem os papéis legais. O policial que fez a prisão serve à justiça de testemunha única e o réu tem de provar sua inocência, em vez de a polícia investigar se houve crime.
O aparelho opressor do Estado funciona de forma mais rígida sobre a população mais pobre, que tem menor acesso à informação, menor conhecimento dos seus direitos, que geralmente mora nas periferias e que é composta em sua maioria por pretos ou pardos.
Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) mostram que entre 2005 e 2012 houve um aumento da proporção de encarceramento devido a crimes ligados às drogas. Seguindo as assimetrias, nesse período, aumentou a proporção de jovens presos, sendo que, em 2012, pessoas de 18 a 24 anos eram a maioria da população prisional. No mesmo ano, 60,8% dos presos eram negros. Essas informações mostram que o ônus da proibição das drogas recai sobre os jovens, negros e pessoas que vivem nas periferias. A Anistia Internacional aponta outro dado alarmante: 77% das 30 mil vítimas de homicídios praticados com emprego de arma de fogo no país eram negras.
Em 2016, o Brasil pode deixar de ser um dos últimos países da América Latina a criminalizar o uso das substâncias consideradas ilícitas. Caso essa decisão seja tomada no Supremo Tribunal Federal, timidamente o país começará a rever sua política custosa, atrasada e ineficaz de lidar com as drogas.
A reforma da política de drogas deve ainda ser ampliada. Deve-se pôr fim à proibição das substâncias consideradas ilícitas e regular a produção, distribuição e consumo destas. É preciso priorizar o respeito aos direitos humanos e desvincular as drogas da violência e do aparato repressor, assim como priorizar as estratégias de redução de danos e de atenção ao usuário problemático pelo setor de saúde e não pelo judiciário. Há que se garantir educação e informação a respeito das substâncias e dos riscos e prejuízos associados ao seu uso, além de vetar a propaganda e qualquer estímulo ao consumo. São também prioridades: garantir a liberdade de opinião e de uso do próprio corpo; derrubar as barreiras para a pesquisa sobre os potenciais terapêuticos dessas substâncias; abolir a disparidade prisional e o genocídio da juventude pobre, negra e periférica; reduzir o estigma sobre o usuário e facilitar o acesso destes ao sistema de saúde. Estas são algumas medidas que, se adotadas, podem reduzir os custos econômicos e sociais provocados por essa guerra falida.
• Dartiu Xavier da Silveira, Renato Filev, Maria Torneli - PROAD
Criminalização inibe a pesquisa científica

Setembro de 2015 - Uma tonelada de maconha é apreendida na BR 101, divisa do Estado de Sergipe com a Bahia
Pelo fato de a maconha ser uma droga ilegal, há limitação de dados epidemiológicos que permitam comparar, em igualdade de condições, os efeitos do seu uso crônico com o de cigarros de tabaco. É provável que se utilizados na mesma quantidade e frequência, os efeitos prejudiciais pulmonares sejam similares. Diversos estudos indicam dados cognitivos, desencadeamento de síndrome amotivacional, aumento do risco de desencadeamento de quadros psicóticos em pessoas com vulnerabilidade e aumento da taxa cardíaca e da pressão arterial, que pode precipitar infartos do miocárdio em jovens do sexo masculino, provavelmente por espasmo da artéria coronária.
Diversos estudos sobre o uso medicinal de derivados da Cannabis sativa, em especial do canabidiol, comprovam sua efetividade no tratamento de quadros de epilepsia. Elisaldo Carlini, criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), professor do Departamento de Psicobiologia e, atualmente, no Programa de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp, foi um dos primeiros pesquisadores do mundo a estudar os efeitos da maconha e seus componentes.
Entre os estudos dos quais participou, destaca-se a tese de doutorado do professor Antonio Zuardi (1980), sobre a interação entre dois canabinóides: o canabidiol e o delta-9-THC, na qual demonstrou o efeito ansiolítico do canadibiol e sua ação antagônica ao delta-9-THC. Estudos sobre o uso de alguns canabinóides, como parte de cuidado paliativo, mostram que eles podem contribuir para o aumento do apetite em pacientes com a sndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). No entanto, ainda faltam estudos que permitam avaliar, a longo prazo, sua eficácia, tolerabilidade e segurança. A ação do canabidiol como anticonvulsivante em casos de epilepsia refratários a outros tratamentos tem sido comprovada por estudos recentes.
Estudos realizados na década de 1970 pelos professores Elisaldo Carlini e Sergio Tufik, no Departamento de Psicobiologia, demonstraram que, em animais de laboratório, a administração de delta-9-tetrahidrocanabinol (o princípio ativo da maconha responsável pelos seus efeitos alucinógenos) potencia a agressividade em animais submetidos à privação de sono. O primeiro estudo sobre a maconha (dentre 46) realizado por Carlini foi publicado em 1965. Estudos posteriores concluíram que a relação entre o uso de maconha ou outras drogas e violência é complexa e bidirecional. Devido aos seus efeitos farmacológicos, alterando a liberação de neurotransmissores, pode ocorrer aumento do comportamento agressivo, principalmente no período de abstinência. Durante o período de intoxicação, a maconha reduz a probabilidade de violência. Entretanto, além dos efeitos farmacológicos, é preciso considerar a associação com outras substâncias e o contexto do consumo.
Entre as principais vantagens da descriminalização da maconha para uso pessoal estão: evitar a colocação de usuários na ilegalidade e diminuir a sobrecarga do sistema penitenciário. A descriminalização do porte de maconha para uso pessoal é importante para diferenciar usuários de traficantes, embora, na prática, sua execução possa ser difícil. A prisão de usuários não resolve o problema da dependência de drogas, nem os problemas sociais relacionados. A abordagem de usuários deve ser realizada por profissionais das áreas de saúde pública e assistência social, voltada ao oferecimento de oportunidade de reflexão sobre o próprio consumo, em vez de encarceramento, visando a ressocialização e recuperação dos dependentes. Por outro lado, o controle do tráfico continua a ser feito pelos sistemas judiciário e de segurança pública.
• Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni – Uded
Políticas repressivas perdem terreno no mundo
Um número cada vez maior de países chega à mesma constatação: é preciso mudar a política de drogas. E a maconha ocupa lugar de destaque nesse cenário. Nos Estados Unidos, 23 Estados já regulam o uso medicinal, 4 deles também o uso recreativo. Em 2017, o Canadá poderá tornar-se o primeiro país do G7 a regular o comércio de maconha para todos os fins. Na Espanha, a maconha é cultivada e compartilhada em associações civis (clubes). No Uruguai, além dos clubes, a maconha será vendida em farmácias.
Em Israel, aproximadamente 22 mil pacientes recebem maconha medicinal do governo. No Chile, a maior plantação legal de maconha da América Latina beneficia 4 mil pacientes e o Parlamento tramita um projeto de lei para a descriminalização do consumo e cultivo pessoal. Mais recentemente, Austrália e Colômbia somaram-se aos países que autorizam o uso medicinal. Embora a lei colombiana permita desde 1986 a produção e o comércio de maconha para uso médico e científico, a prática nunca havia sido regulamentada.
Similarmente, a lei brasileira autoriza desde 2006 “o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, exclusivamente para fins medicinais ou científicos” (Lei nº 11.343/2006). No entanto, sem uma regulamentação que defina regras claras, a prática permanece sendo criminalizada no Brasil. A aprovação da importação de extratos contendo prioritariamente canabidiol, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foi um passo muito curto em direção a uma regulação eficaz e igualitária.
A Cannabis possui centenas de componentes, grande parte deles com potencial terapêutico. Inclusive o tetrahidrocanabinol (THC), comprovadamente eficaz no tratamento da dor crônica, náusea e vômito produzidos pela quimioterapia, falta de apetite e espasmos musculares que ocorrem em diversas enfermidades. Nestes casos, não há dúvida de que os benefícios são muito maiores que os riscos. É preciso regulamentar o uso da planta como um todo, em suas diferentes formas de administração, e viabilizar a produção nacional para que uma parcela maior desses pacientes tenha acesso ao tratamento.

Lucas Maia e Zila van der Meer Sanchez Dutenhefner, do Cebrid
Contudo, o número de pessoas que faz uso estritamente médico da maconha representa apenas uma parte dos consumidores e regular a maconha não será tarefa fácil. Vai exigir a cooperação de diferentes setores sociais. As experiências em andamento em outros países podem fornecer subsídios para que tomemos melhores decisões ao elaborar um modelo de regulação para o Brasil. Isso envolve definir questões como: limite de compra/estoque, preço, qualidade, potência e, muito importante, a publicidade vinculada à maconha. As regras irão depender dos objetivos que a regulação pretende priorizar.
Nos países onde a maconha foi regulada, não houve explosão do consumo ou aumento dos crimes. Por outro lado, após 50 anos de guerra às drogas, muitas nações perceberam que a simples repressão não foi capaz de reduzir a oferta nem a demanda. Pelo contrário, o uso (e os riscos do uso) só aumentou. Novas drogas mais potentes foram desenvolvidas. Adulterantes ameaçam a saúde dos usuários.
A estigmatização e a criminalização impedem que as pessoas que desenvolvem problemas procurem tratamento. O encarceramento de usuários e pequenos traficantes, além de seletivo a grupos sociais já marginalizados, sobrecarrega o sistema prisional. Assim, a proibição demonstrou ser mais prejudicial à saúde e à sociedade do que o problema que ela supostamente busca controlar.
É tempo de colocar a saúde e os direitos humanos no centro das políticas de drogas, onde prevaleçam evidências científicas, em vez de concepções emotivas e ideológicas.
• Lucas Maia - Cebrid
Participação da universidade é decisiva no país
O Brasil tem uma das políticas públicas mais avançadas sobre drogas no mundo devido, em grande parte, à participação de docentes da Unifesp e de outras universidades. Há um capítulo da Política Nacional sobre Drogas que dispõe sobre Estudos, Pesquisas e Avaliações, no qual se destaca a importância de intervenções baseadas em evidências de efetividade, o que reforça a importância de uma abordagem racional e científica da questão, afirmam pesquisadores da Unidade de Dependência de Drogas (Uded) do Departamento de Psicobiologia.

Colaboraram neste artigo
Departamento de Psiquiatria da EPM/Unifesp: Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Inpad/CNPq)
Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp: Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid)
Departamento de Psicobiologia da EPM/Unifesp: Unidade de Dependência de Drogas (Uded), Núcleo de Pesquisa em Saúde e Uso de Substâncias (Nepsis) e Disciplina de Medicina e Sociologia do Abuso de Drogas (Dimesad)
Lógica de Redução de Danos valoriza o ser humano
O uso abusivo de substâncias leva a uma condição de grande vulnerabilidade, não apenas pelo impacto na saúde individual, mas sobretudo pelo estigma, que impõe exclusão e marginalização. A atenção ao usuário de álcool e outras drogas deve promover equidade e integralidade, além de uma resposta pautada na ética e na garantia de direitos.
Segundo o Ministério da Saúde (MS), o uso de drogas “vem sendo associado à oferta de ‘tratamentos’ inspirados em modelos de exclusão/separação dos usuários do convívio social”. Nesta lógica de atendimento, o que se privilegia é o confinamento e a abstinência, como objetivo principal a ser alcançado. Ainda de acordo com o MS, as ações de prevenção e intervenção devem estar em consonância com a Reforma Psiquiátrica, atuando na lógica da Redução de Danos aos agravos e riscos à saúde. A articulação deve ser feita no território, integrada à comunidade e à rede de cuidados.
A exclusão social e a falta de integralidade do cuidado são desafios recorrentes na trajetória da saúde mental e mais amplamente da saúde pública. As pessoas que sofrem de transtorno mental e os dependentes de substâncias psicoativas, mesmo com as alternativas contempladas pela Reforma Psiquiátrica, encontram ainda grande dificuldade no encaminhamento de suas questões de saúde, enfrentando a discriminação social e o preconceito, muitas vezes dentro do próprio serviço de saúde.
Tais fatores apontam para a necessidade de adequação do modelo assistencial, por meio da implementação de um plano de ações que possa contemplar as reais necessidades da população, garantindo um atendimento igualitário e de qualidade, em consonância com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).
O tratamento preconizado aos indivíduos que fazem uso abusivo ou apresentam dependência de álcool e outras drogas tem se pautado, ao longo dos tempos, em uma visão médica, sobretudo psiquiátrica, que indica, prioritariamente, internação em leitos de hospital psiquiátrico, caracterizando assim uma tendência à medicalização excessiva para lidar com o sofrimento psíquico. Este modelo deve ser superado, pois desconsidera a realidade multifacetada que se mostra presente nessa problemática, envolvendo questões sociais, psicológicas, econômicas e políticas.
A política de saúde recomenda que o processo saúde-doença seja visto de forma integral, valorizando aspectos não apenas físicos e biológicos, mas também reconhecendo os contextos sociais. Desse modo, para responder de forma mais efetiva aos desafios da saúde, deve-se construir uma resposta em rede, estabelecendo alianças intra e intersetoriais capazes de construir estratégias centradas na pessoa, seus familiares e a comunidade. As ações de saúde integral devem considerar a realidade peculiar das pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas, considerando a heterogeneidade dessa população. E, desse modo, as ações de saúde devem ter múltiplas ofertas de cuidado, adaptando-se a cada caso.
• Dartiu Xavier da Silveira e Thiago Marques Fidalgo – Proad
Estado deve combinar prevenção, educação e sanção
A lei que estabelece horário de fechamento para bares no município de Diadema (SP), Lei 2.107/2002, é, talvez, o exemplo mais bem-sucedido de mudança da política sobre álcool baseada em evidências no Brasil até agora. Contando com ampla adesão do público e aplicação proativa, essa iniciativa reduziu 1/3 dos assassinatos dentro de um período de três anos. Além de fornecer ao país uma consciência de nossas altas taxas da associação entre bebida e direção, a pesquisa inspirou a adoção, em 2008, da legislação de tolerância zero ao motorista que ingerir bebida alcoólica. Após três anos da mudança, foi estimada uma redução de 21% sobre o comportamento de beber e dirigir. O desafio é implementar novas facetas para melhor compreender, avaliar e implementar soluções para lidar com esse que é um dos maiores fardos da saúde pública brasileira, a dependência química.
O governo tende a não impor uma limitação à indústria, que por sua vez oferece promessas de crescimento econômico, geração de empregos e aumento da base tributária. A nossa indústria do álcool é uma das maiores investidoras das campanhas políticas de todos os grandes partidos. Perante este cenário, o Brasil tem sido, corretamente, referenciado como um "mercado não regulamentado" em relação às políticas de álcool.
Um estudo, coordenado pela Uniad mostrou que a maioria dos menores de idade participantes da pesquisa conseguiu comprar álcool em mercados na sua primeira tentativa. Isso ocorreu em 71% das vezes em São Paulo, 86% no Rio de Janeiro, 77% em Recife, 73% em Belo Horizonte, 79% em Campo Grande e 88% em Belém. Esses resultados levaram a iniciativas para maior fiscalização da lei, especialmente pelo governo do Estado de São Paulo.
Essas pesquisas não apenas forneceram dados para iniciativas baseadas em evidências, mas também para incentivar mudanças na legislação. Usar drogas não é crime no Brasil, mas portar, sim. O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar a constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas e definirá se é crime ou não portar drogas para consumo próprio.
Ninguém mais defende que o usuário seja exposto a processos criminais infindáveis, muito menos a penas de prisão. No entanto, o porte de drogas é considerado contravenção penal por todos os países da Europa. Mesmo os países que permitem algum tipo de porte, partem do princípio de que possuir substâncias psicoativas é uma contravenção passível de sanções. No caso brasileiro, “legalizar” o porte, pela supressão de um artigo da lei, parece ser uma atitude no mínimo displicente.
As principais legislações europeias e americanas se preocupam em diferenciar o usuário do traficante, estabelecendo previamente uma quantidade máxima para o porte – especialmente para maconha – ou aplicando critérios mais subjetivos, tais como pequenas quantidades, mais do que pouco ou quantidade necessária para o consumo por 10 dias. Em todas as situações, o contexto da apreensão da substância complementa esse parâmetro. Para isso, cabe sempre à polícia e ao poder judiciário fiscalizar e garantir o cumprimento dessas determinações legais.
Sempre haverá a lei entre o usuário e o tratamento. Aliás, em todas nações ela pode ser uma das portas de entrada para o tratamento estruturado. É o caso de Portugal, por exemplo, onde quem é encontrado com quantidades de droga compatíveis com o porte recebe um auto da ocorrência, o qual será remetido à Comissão de Dissuasão territorialmente competente. O usuário deverá se apresentar a essa dentro de 72 horas. Tal comissão é formada por um advogado, um médico e um assistente social. Para os não dependentes, a comissão poderá suspender o processo penal e aplicar multas; para os dependentes, a suspensão está condicionada à entrada em tratamento por até dois anos.
Parte dos indivíduos consegue manter seu consumo dentro de sua esfera privada, realizando-o com autonomia e alteridade suficientes para escolher o momento e a intensidade adequados. O problema é que uma outra parte não consegue, ocasionando sofrimento e desestruturação do seu entorno familiar e social. Dados da Unifesp indicam que para cada dependente de drogas, no âmbito familiar existem mais quatro pessoas afetadas de várias maneiras, atingindo cerca de 8 milhões de brasileiros.
Políticas públicas de qualidade são aquelas que conseguem combinar políticas de redução de oferta, demanda e danos. Portanto, não se troca simplesmente repressão por abordagens humanitárias, porque elas pertencem a âmbitos diferentes. Medidas de redução de oferta são úteis para regular qualquer tipo de mercado de substâncias (lícitas ou ilícitas). Por outro lado, em locais e situações onde o risco de vida ou de morbidade são prementes, as ações de redução de danos são mandatórias. Do mesmo modo, portas de saída da cultura de consumo para a da recuperação devem estar disponíveis, estruturadas e com profissionais capacitados para ajudar o usuário a conquistar a abstinência estável.
A máxima “acabar com a repressão para que o usuário possa ser objeto da saúde pública” quase sempre é empregada de forma falaciosa. Está mais preocupada em eliminar a proibição – algumas vezes a serviço dos interesses da indústria interessada na produção e na distribuição da maconha – do que em oferecer saúde pública de qualidade para quem já está doente e vulnerável.
A redução de danos deve compor as estratégias de cuidado aos usuários de drogas, mas o tratamento – do diagnóstico à oferta de abordagens psicossociais e farmacológicas – não pode ser negligenciado. Nesse sentido, a Holanda, famosa por seus coffee shops, é um dos países da comunidade europeia com um dos melhores sistemas de tratamento voltado para a abstinência para usuários de maconha.
Enquanto, no Brasil, nos perdemos em discussões maniqueístas e em táticas de guerrilha jurídica, o mundo gira e segue criando modelos de cuidado interessantes, que combinam prevenção, redução de danos e tratamento, independentemente do status legal das substâncias.
• Ronaldo Ramos Laranjeira, Clarice Sandi Madruga, Ilana Pinsky, Marcelo Ribeiro, Sandro Mitsuhiro, Sergio Duailibi, André C. Q. Miguel, Luciana T. S. Massaro, Renata R. Abdalla, Ariadne Ribeiro – Uniad/Inpad
Estigma do usuário prejudica política sobre drogas
A primeira Política Nacional Antidrogas (PNAD) do país foi instituída por meio do Decreto Presidencial nº 4.345, de 26 de agosto de 2002, e posteriormente rebatizada como Política Nacional sobre Drogas (Lei nº 11.343/2006). Isso é reflexo da evolução conceitual que ocorreu no período, dando maior ênfase às ações baseadas em evidências científicas. A atual política brasileira define princípios e metas relacionadas à prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social de pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas; redução de danos sociais e à saúde; redução da oferta; e estudos, pesquisas e avaliações. Entretanto, encontra dificuldades para sua implementação, destacando-se entre as principais barreiras a estigmatização dos usuários.
Muitos profissionais das áreas de saúde e assistência social, assim como grande parte da população, atribuem aos usuários falhas morais e de caráter, por desconhecimento dos fatores de vulnerabilidade biológicos e psicossociais. É de suma importância investir na educação e em programas preventivos que capacitem os usuários a fazer escolhas conscientes, e os profissionais a encararem de modo não moralista, mas cientificamente embasado, a dependência e outros problemas associados ao uso.
Nesse sentido, as Redes de Cuidado têm recebido especial atenção na área de saúde mental e é foco de pesquisas do Nepsis para expandir o conhecimento sobre elas. Compostas por profissionais, lideranças comunitárias, familiares ou amigos, as redes se organizam e ampliam as possibilidades de cuidados em saúde aos dependentes químicos. No entanto, apesar da sua relevância, ainda existem muitas dificuldades na prática de articulação das redes, como a falha de comunicação e conhecimento entre os setores e serviços, o preconceito, a atribuição de culpa à família ou ao próprio dependente, bem como a crença de que o médico vai resolver o problema apenas com remédios ou internação. O trabalho em rede exige ampla reflexão e mudanças de atitude.
Cada sociedade também tem suas características culturais e nem sempre o que funciona em um país funcionará em outro. Por exemplo, em países anglo-saxões e nórdicos, a disciplina é um valor em si, o que não ocorre na mesma intensidade na sociedade brasileira. Assim, torna-se necessário avaliar o provável impacto de uma regulamentação mais liberal em nossa sociedade e o momento adequado à sua implementação. É essencial que exista previamente uma preparação educacional, com o estabelecimento de programas de prevenção efetivos voltados para o fortalecimento de escolhas racionais e resiliência à pressão social para o uso de drogas.
A subjetividade do julgamento de juízes, diante da atribuição excessiva dada a eles, ou mesmo de um corpo de jurados, não é um problema exclusivo dessa área; ocorre para qualquer tipo de processo judicial. Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 7.663/10 (que aguardava aprovação do Senado no momento de fechamento desta matéria), que propõe, entre outras alterações da política sobre drogas, como critério para diferenciar usuários de traficantes uma quantidade equivalente a até no máximo cinco dias de consumo (quantidade média com base em estudos epidemiológicos).
As universidades brasileiras também têm contribuído de modo marcante na formação de profissionais, das mais diversas áreas, que lidam com as questões relacionadas ao uso de álcool, tabaco e outras drogas, por meio de cursos presenciais e à distância.
Vários estudos têm sido realizados sobre a efetividade desses cursos, envolvendo não somente seus participantes, mas também os pacientes atendidos pelos profissionais de saúde que receberam capacitação. Com base em dados coletados durante e após o curso, têm sido desenvolvidos estudos que geraram dissertações de mestrado e teses de doutorado, artigos científicos e apresentações em congressos.
A universidade tem também papel essencial como espaço para realização de estudos e formação de pesquisadores. Há estudos realizados na Unifesp em todas as áreas; dos levantamentos epidemiológicos até aqueles sobre efetividade de medicamentos para tratamento de dependentes, passando por intervenções psicossociais e pesquisa básica sobre a neurobiologia das dependências.
O diálogo e a colaboração efetiva entre a universidade, os responsáveis pelas políticas sobre drogas, os profissionais das redes de saúde, educação, assistência social, operadores do Direito e usuários são essenciais para o desenvolvimento de ações efetivas, baseadas em evidências científicas e com respeito aos direitos humanos.
O diálogo da universidade com a sociedade também se dá por meio da divulgação de informações em linguagem leiga e de intervenções virtuais. A equipe da Uded, em parceria com pesquisadores das universidade federais do Paraná e de Juiz de Fora, do México, da Índia e da Bielorrússia, com apoio da OMS, desenvolveu um portal (www.informalcool.org.br) no qual há diversas informações sobre álcool e uma intervenção virtual (www.informalcool.org.br/bebermenos) por meio da qual usuários de risco podem controlar e desenvolver estratégias para reduzir seu consumo. Está em andamento um estudo clínico controlado (multicêntrico internacional) sobre a efetividade da intervenção. Para ampliar a divulgação, foi criada uma página no Facebook (www.facebook.com/informalcool), por meio da qual pesquisadores e pessoas leigas podem ter acesso rápido à informação e trocar ideias sobre o tema.
• Ana Regina Noto, Denise De Micheli, Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni – Uded/Nepsis
Informálcool
www.informalcool.org.br
Bebermenos
www.informalcool.org.br/bebermenos