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Conteúdo faz parte das ações que celebram os 25 anos da instituição

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Segunda, 12 Agosto 2019 11:14

Dos símbolos aos índios do Brasil

Palestra com Prof. Dr. Acary Souza Bulle Oliveira acontece no dia 28 de agosto

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Monica Tiyoko Morioka Hashimoto venceu o Prêmio Sempre On Innovation de 2018, na categoria Universitários

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Sábado, 10 Outubro 2015 14:34

Herança do homem branco

Proximidade com alimentos industrializados estão deixando nossos índios tão ou mais doentes que a população geral. Novos casos de síndrome metabólica cresceram 37,5% ao longo de dez anos

Bianca Benfatti
Com colaboração de Ana Cristina Cocolo

grafismo xingu 05
Entretesses05 p047 RitualTawarawana

Ritual Tawarawaná na aldeia Ngoiwere, povo Khisêdjê

Apesar de as doenças infecciosas e parasitárias ainda serem o motivo de várias mortes entre a população indígena do Xingu, é a prevalência cada vez maior de doenças crônicas – como hipertensão arterial e diabetes mellitus – que está deixando especialistas de sobrealerta e preocupados com o futuro dessa população. 

Uma pesquisa coordenada pela professora do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – Campus São Paulo – e do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva, Suely Godoy Agostinho Gimeno, apontou que 10,3% dos indígenas, tanto do sexo masculino quanto do feminino, apresentavam sintomas de hipertensão arterial. A intolerância à glicose foi observada em 30,5% das mulheres – quase 7% com diabetes mellitus – e em 17% dos homens. A dislipidemia (presença excessiva ou anormal de colesterol e triglicerídeos no sangue) foi detectada em 84,4% dos participantes da pesquisa. Por fim, constatou-se que 57% dos homens e 36% das mulheres sofria com excesso de peso. Já a obesidade central (acúmulo de gordura na parte superior do corpo) predominou entre as indígenas com 68%. 

“Um achado importante foi que, pelos dados da impedância bioelétrica (resistência e reactância), que são uma ‘proxi’ da composição corporal dos sujeitos, observou-se que a elevada prevalência de excesso de peso, particularmente entre os homens, se deve à maior quantidade de massa muscular e não de gordura corporal”, diz a pesquisadora. Isso sugere que esses indivíduos são musculosos, por serem ativos, e não obesos, refutando a ideia de que o sedentarismo estaria relacionado com as doenças crônicas encontradas. Desse modo, o excesso de peso deve ser analisado de outra maneira. 

Os dados foram colhidos de 179 indígenas do povo Khĩsêdjê, na aldeia principal Ngôjwêre – Posto indígena Wawi – no Parque Indígena do Xingu (PIX), em dois períodos: julho de 2010 e agosto e setembro de 2011. Na ocasião foram realizadas entrevistas, exames e testes físicos por uma equipe composta por médicos, enfermeiras, nutricionistas, educadores físicos, graduandos do curso de Medicina e de Enfermagem, além de uma antropóloga do Projeto Xingu e um sociólogo. Agentes de saúde e professores indígenas, que vivem na aldeia Ngôjwêre, atuaram como intérpretes e ajudaram a estabelecer a comunicação para a coleta de dados.

Durante o estudo, foram realizadas várias conversas com as lideranças, homens e mulheres, sobre as mudanças no modo de viver e de se alimentar. A devolutiva dos dados e informações foi importante para a construção de estratégias coletivas para o enfrentamento dos problemas apontados pela pesquisa.

Essa pesquisa, intitulada Perfil Nutricional e Metabólico de Índios Khĩsêdjê originou, até o presente, seis apresentações em conferências internacionais, duas em congressos nacionais, três dissertações de mestrado, duas teses de doutorado (uma ainda em conclusão) e duas publicações de artigo na revista Cadernos de Saúde Pública. 

Em dez anos, 37% de novos casos

Um dos desdobramentos da pesquisa de Suely avaliou a incidência acumulada de síndrome metabólica na população Khĩsêdjê ao longo de dez anos, ou seja, a proporção de indivíduos que desenvolveram a doença durante esse período. A pesquisa foi realizada em duas etapas, na principal aldeia dos índios Khĩsêdjê, a Ngôjwêre, dentro do PIX. A primeira investigação ocorreu entre os anos de 1999 e 2000 e a segunda entre 2010 e 2011.

Os resultados apresentados como tese de doutorado pela nutricionista Lalucha Mazzucchetti ao programa de pós-graduação em Saúde Coletiva, orientada pela professora, assustam e mostram o quanto a saúde dos nossos índios está deteriorando-se. Foi encontrado um aumento de 37,5% de novos casos do problema.

A síndrome metabólica é uma doença crônica não transmissível (DCNT) que pode ser definida pela presença concomitante de ao menos três alterações metabólicas, entre elas: a obesidade central, a intolerância à glicose, a hipertensão arterial, a hipertrigliceridemia (altos índices de triglicérides) ou baixo HDL colesterol (chamado de bom colesterol). A presença da síndrome eleva de 1,5 a 2,5 vezes o risco de morte no indivíduo, inclusive por doenças cardiovasculares.

O estudo, que acompanhou 78 índios acima de 20 anos, também aponta que surgiram 47,4% novos casos de hipertrigliceridimia, 39,8% de hipertensão arterial (com um acréscimo de 3% para cada ano de vida dos indivíduos analisados, independentemente do sexo), 32% de obesidade central, 30,4% de excesso de peso, 29,1% de hipercolesterolemia (colesterol alto), 25% de baixo HDL colesterol, 10,4% de elevado LDL (colesterol ruim) e 2,9% de diabetes mellitus.

Quando se comparou os valores entre os gêneros, o sexo feminino apresentou maior incidência acumulada de síndrome metabólica (48,1%) que os homens (27,6%), obesidade central (60% versus 20%) e LDL elevado (19% versus 3,7%). Já entre os homens, os novos casos foram maiores com relação à hipertensão arterial (41,7% versus 36,2%), à hipercolesterolemia (33,3% versus 24%) e ao elevado nível de ácido úrico no sangue (21,9% versus 5,9%).

Entretesses05 p048 alimentacao aldeia

Anta recém-abatida que proverá alimentação à aldeia Kh~isêdjê por até dois dias

Mudança de hábito

De acordo com Suely, essas doenças crônicas podem estar relacionadas à crescente exposição dos índios aos centros urbanos, o qual estimula o consumo de alimentos industrializados e o trabalho em atividades remuneradas, entre outros comportamentos absorvidos por eles que substituem as tradições alimentares e cotidianas dos índios, mudando a relação destes com o trabalho, terra e alimentação.

Para a professora, a preservação dos hábitos e costumes desses povos seria uma medida preventiva de grande valia. Como exemplo de tal iniciativa, os profissionais da equipe do Projeto Xingu estão auxiliando a equipe de saúde que atua no Polo Wawi a organizar e realizar um diálogo intercultural, proposto na forma de oficinas de culinária. A ação busca informar aos Khĩsêdjê sobre o uso correto da nossa alimentação (não indígena) e valorizar sua dieta tradicional. Além dos Khĩsêdjê, oficinas foram realizadas com os Kawaiwete e com os Yudjá.

Suely ainda avalia que a garantia da terra e dos territórios indígenas também é fundamental, já que eles dependem dela para sua sobrevivência por meio da caça, pesca, cultivo e coleta de alimentos. “Além disso, algumas políticas públicas podem agravar o problema como, por exemplo, a de distribuição de cestas básicas para esses indivíduos”, afirma. “É preciso que tais iniciativas respeitem as diferenças culturais existentes entre os indígenas e os não indígenas”, completou.

Tratamento e infraestrutura

O tratamento dos indígenas, que apresentam sintomas das enfermidades investigadas, particularmente do diabetes mellitus, às vezes é complicado, pois demanda condições especiais nem sempre disponíveis nas aldeias. “A insulina precisa estar em constante refrigeração, os medicamentos necessitam de controle da dose e de horário e os níveis de glicemia e da pressão arterial precisam ser monitorados regularmente”, explica Suely.

Os indígenas que precisam de acompanhamento médico continuam sendo atendidos e monitorados pela equipe de saúde da Unifesp, na Unidade de Saúde e Meio Ambiente do Departamento de Medicina Preventiva da EPM/Unifesp. “Os Khĩsêdjê desejavam conhecer seu atual perfil de saúde no que diz respeito à presença de doenças crônicas”, afirma a pesquisadora. “Além da importância científica e acadêmica dessa investigação, atendemos também uma demanda dessa comunidade”.

Entretesses05 p049 criancas rio xingu

Crianças Khisêdjê banhando-se no Rio das Pacas, localizado em uma sub-bacia hidrográfica do Alto Rio Xingu

Artigos relacionados: 
SANTOS, Kennedy Maia dos; TSUTSUI, Mario Luiz da Silva; GALVÃO, Patrícia Paiva de Oliveira; MAZZUCCHETTI, Lalucha; RODRIGUES, Douglas; GIMENO, Suely Godoy Agostinho. Grau de atividade física e síndrome metabólica: um estudo transversal com indígenas Khĩsêdjê do Parque Indígena do Xingu, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, v. 28, nº 12, p. 2327-2338, dez. 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2012001400011>. Acesso em: 16 set. 2015.
MAZZUCCHETTI, Lalucha; GALVÃO, Patrícia Paiva de Oliveira; TSUTSUI, Mario Luiz da Silva; SANTOS, Kennedy Maia dos; RODRIGUES, Douglas Antônio; MENDONÇA, Sofia Beatriz; GIMENO, Suely Godoy Agostinho. Incidência de síndrome metabólica e doenças associadas na população Khĩsêdjê do Xingu, Brasil Central, no período de 1999-2000 a 2010-2011. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, v.30, nº 11, p.1-11, nov. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n11/pt_0102-311X-csp-30-11-2357.pdf>. Acesso em: 16 set. 2015.

grafismo xingu 05
Publicado em Edição 05
Sábado, 10 Outubro 2015 13:30

Uma batalha ainda longe do fim

Entrevista: Projeto Xingu

Ana Cristina Cocolo e Celina M. Brunieri

grafismo xingu 04

Em entrevista concedida à Entreteses, membros do Projeto Xingu explicam vários aspectos que envolvem as 16 etnias do parque indígena. Nela, são abordados não apenas a manutenção da saúde dos índios, como também o trabalho pela preservação da sua cultura e dos costumes; os projetos de lei que abrem brechas para rever as demarcações de terras já realizadas e a organização de associações na luta por direitos. Participam da conversa os médicos sanitaristas Sofia Mendonça – coordenadora do Projeto Xingu –, Douglas Mendonça – chefe da Unidade de Saúde e Meio Ambiente do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) – e a enfermeira Lavínia Oliveira, coordenadora de Recursos Humanos do projeto. 

Entretesses05 p039 sofia mendonca projeto xingu

Sofia Mendonça, médica sanitarista e coordenadora do Projeto Xingu, em oficina culinária na aldeia Tubatuba, do povo Yudjá

Entreteses - As ações realizadas pela EPM no Parque Indígena do Xingu (PIX), tais como vacinação e avaliação de crianças, gestantes e portadores de doenças, têm sido suficientes para a manutenção e promoção da saúde nessa área de proteção? Existe aumento de doenças crônicas entre as etnias do PIX?

Projeto Xingu - Em termos. A melhora nas condições de vida e a promoção da saúde não dependem apenas do setor saúde. Um exemplo é o aumento das interferências do agronegócio no entorno do PIX (plantations de soja, milho, cana-de-açúcar e pecuária extensiva) que tem impactado os formadores do rio Xingu que está sendo rapidamente assoreado e contaminado com agrotóxicos e dejetos da pecuária. Os indígenas relatam claramente a diminuição do pescado, fundamental para sua segurança alimentar. Também a caça tem diminuído, já que o desmatamento no entorno afeta diretamente os ecossistemas do PIX.

Em 1986 participamos do projeto Intersalt, uma grande pesquisa epidemiológica, multicêntrica, a respeito do consumo de sódio e sua relação com a hipertensão arterial sistêmica. Os xinguanos apresentavam sódio urinário baixo, não tinham obesidade ou sobrepeso, não tinham diabetes mellitus e nem hipertensão arterial. Os níveis de pressão sistólica não subiam com a idade. Um perfil totalmente diferente do encontrado pelos demais pesquisadores em cidades da Europa, Ásia e Américas. Do início dos anos 1990 para cá, com a intensificação das relações de contato (nos últimos vinte anos surgiram oito novos municípios no entorno do Xingu), a crescente monetarização da economia xinguana com a contratação de indígenas como trabalhadores de educação e saúde, a criação de associações indígenas, por exemplo, e mais recentemente os programas e benefícios sociais do governo, que distribuem dinheiro e alimentos, promoveram uma grande mudança na dieta tradicional dos indígenas, o maior consumo de alimentos industrializados, que está associado ao aumento da desnutrição infantil e à obesidade, hipertensão arterial e diabetes entre os adultos. No Xingu a situação ainda não está crítica como, por exemplo, entre os vizinhos Xavante, que em algumas aldeias apresentam 28% de prevalência de diabetes do tipo II. Caso nada seja feito, o futuro é assustador.

Se compararmos os indicadores de saúde do PIX, tais como mortalidade infantil, incidência de doenças preveníveis por vacina, incidência de tuberculose e de câncer do colo uterino, podemos afirmar que, comparado a outros povos indígenas amazônicos, o Xingu apresenta bons indicadores. Entretanto, esses indicadores ainda são piores do que os da média da população brasileira.

 

Entretesses05 p040 sofia e agentes saude

Sofia com agentes de saúde na aldeia Ipatse, do povo Kuikuro

E. De forma geral, os 16 povos do PIX sofrem das mesmas doenças ou elas atingem de forma diferente cada etnia?

P.X. As principais doenças são as mesmas entre os xinguanos e entre a maioria dos povos indígenas no Brasil e estão relacionadas com as condições de vida, de acesso a serviços de saúde e à relação de contato com a sociedade regional. Há um predomínio de doenças respiratórias e diarreicas, principalmente em crianças, que convivem com a emergência de doenças crônicas não transmissíveis, como a obesidade, hipertensão e diabetes, nos adultos. Apenas uma doença, a blastomicose queloidiana ou doença de Jorge Lobo, é exclusiva da etnia Kaiabi (Kawaiwete), ainda que não tenhamos constatado, até hoje, sua transmissão em território xinguano. Todos os casos diagnosticados são de indígenas idosos, que nasceram na área tradicional Kaiabi, no sul do Pará e nordeste de MT, fora do PIX.

 

E. A desnutrição afeta a vida dos povos xinguanos? Os territórios ocupados pelas etnias é suficiente para garantir a sobrevivência de cada uma delas?

P.X. Pensamos que hoje, com o aumento populacional e o impacto ambiental, o território não é mais suficiente para a sobrevivência das etnias do Xingu nos moldes tradicionais. As regiões de terra preta (locais com solo fértil e adequado ao cultivo) já não são mais suficientes para todos e o aumento do número de aldeias não tem permitido o rodízio de locais de roças levando ao esgotamento das terras férteis. A tecnologia indígena de agricultura não tem resposta para essa situação. Esse quadro, associado às mudanças na dieta tradicional, é responsável pelo aumento da desnutrição nas crianças e da obesidade nos adultos. A segurança alimentar dos povos xinguanos está ameaçada e a resposta governamental a essa problemática tem sido insuficiente, já que o governo coloca os indígenas no mesmo patamar das populações urbanas de baixa renda, contemplando-os com as mesmas políticas assistencialistas. Não é uma cesta básica com alimentos industrializados que vai resolver os casos de desnutrição nas aldeias, pelo contrário, pode trazer mais problemas relacionados à nutrição. Em um dos seminários que realizamos em área para discutir essa questão da desnutrição, foram levantados vários fatores, além da escassez das terras pretas. As roças estão cada vez mais longe das aldeias e, com isso, eles não conseguem acompanhar e vigiar de perto as plantações, que ficam mais vulneráveis aos ataques dos porcos do mato, por exemplo. Nos últimos anos alguns povos têm perdido toda sua roça e acabam passando fome ou usando os salários dos trabalhadores para comprar comida na cidade. Outros fatores que as mulheres apontam como explicação para o aparecimento da desnutrição são relacionados às mudanças culturais como, por exemplo, os casamentos mais precoces dos jovens quando não estão preparados para criar seus filhos e acabam não seguindo as regras tradicionais, diminuindo o intervalo interpartal e, consequentemente, não conseguindo cuidar de forma adequada de cada filho, aumentando os casos de desnutrição. 

 

E. Pode-se dizer que o Parque Indígena do Xingu é um cartão postal da política indigenista no Brasil? 

P.X. Já foi, no passado. A criação do Parque Indígena do Xingu foi um marco na política indigenista e cumpria este papel de cartão postal. O governo mostrava o parque como exemplo de política indigenista, protecionista, enquanto a relação que se estabelecia com outros povos em outras áreas indígenas era completamente diferente. Vários povos foram eliminados ou tiveram seus territórios invadidos e retalhados. Essa situação, como dizem as próprias lideranças mais jovens, deixou os povos do Xingu um pouco distantes do movimento indígena nacional. Hoje a situação do Xingu, do ponto de vista da política indigenista do Estado brasileiro, pouco difere de outras regiões. Os recursos da Funai vêm diminuindo ano a ano. Falta pessoal, faltam equipamentos e, principalmente, uma política que efetivamente defenda os direitos indígenas. Se há anos o PIX, por sua projeção nacional e internacional, recebia um certo tratamento diferenciado, isso não mais ocorre. Restou, entretanto, o apelo midiático dos grandes rituais xinguanos divulgados mundo afora como ritual funerário do Kwarup, para o qual sempre são convidadas autoridades, celebridades e a mídia. No mais, hoje o Xingu é um território indígena tão abandonado pelo Estado como os demais. Nesse sentido houve um nivelamento por baixo.

 

Entretesses05 p041 formacao agentes indigenas

Livros produzidos junto com o Projeto Xingu para o Curso de Formação de Agentes Indígenas de Saúde

E. De que forma a preservação do conhecimento tradicional indígena – além da transmissão oral – tem sido levada a efeito pelas novas gerações e, inclusive, pelos não índios? 

P.X. Nos últimos 15 anos, várias associações indígenas foram criadas pelos povos do PIX. A maioria das etnias tem sua própria associação e a Associação Terra Indígena Xingu (ATIX) funciona como uma “central” de associações, desenvolvendo projetos junto a diferentes etnias xinguanas. Essas associações buscam financiamento para projetos dos mais variados, que incluem valorização e preservação cultural e registro dos conhecimentos tradicionais. Os recursos são provenientes da cooperação internacional e de financiamentos governamentais. Os pontos de cultura, por exemplo, criados pelo ex-ministro Gilberto Gil e que estão sendo revigorados pelo atual ministro Juca Ferreira, foram fontes importantes de fomento a projetos culturais, como produção de cestaria, oficinas de flautas (Djakui), produção de livros bilíngues ou apenas na língua materna sobre plantas medicinais, cantos sagrados e rituais, entre outros. Um projeto especialmente interessante é a formação de cineastas indígenas, que tem feito vídeos interessantes sobre mitos, histórias antigas, de antes do contato, culinária e rituais tradicionais, etc. Em uma cultura oral, essa forma de registro é bastante eficiente, até porque os vídeos são falados na língua indígena. Temos trabalhado bastante com essa questão. Durante a formação dos agentes indígenas de saúde no Xingu, foram produzidos livros bilíngues sobre a saúde das crianças, nutrição, vigilância nutricional e segurança alimentar. Esses livros foram elaborados a partir das pesquisas realizadas nas aldeias, pelos agentes de saúde, sobre o conhecimento tradicional a respeito desses temas. 

Uma outra estratégia que os professores indígenas têm adotado é trabalhar esses conhecimentos nas escolas das aldeias, trazendo os especialistas tradicionais para falar em sala de aula sobre determinadas festas e rituais, sobre cantos e rezas para as roças produzirem ou fazendo oficinas sobre artesanato como colares, cestaria, esteiras, redes, etc.

As associações indígenas também têm trabalhado com mídias diferentes para o registro do conhecimento tradicional, inclusive criando sites na internet próprios para isso. Esses projetos, em geral, têm uma função importante de estímulo, principalmente entre os jovens, criando possibilidades de acesso a tecnologias e informações relacionadas à sua cultura e ao mesmo tempo a outras culturas, inclusive a do não indígena. 

 

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Limite entre dois mundos: desmatamento demarca o PIX das fazendas de soja e gado do entorno

E. O PIX está ameaçado por novos projetos de lei, que interferem – por exemplo – na área demarcada do parque?

P.X. Os pactos de governabilidade com o agronegócio e com a indústria extrativista predatória (minérios, madeira) lembram os tempos coloniais. Para o modelo de desenvolvimento brasileiro, os índios são obstáculos a serem removidos, como foram no passado pelos bandeirantes e religiosos. Em 2013, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) fez um levantamento no Congresso Nacional e encontrou pelo menos 50 iniciativas legislativas que retiram direitos constitucionais dos indígenas. No mesmo ano, outro estudo, feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) a respeito das obras do PAC II na Amazônia, mostrou que haviam 114 obras incidindo sobre territórios indígenas (hidrelétricas, gasodutos, estradas, ferrovias, etc.) e que 33 delas incidiam diretamente em territórios onde ainda existem grupos indígenas isolados e de contato recente, pessoas extremamente vulneráveis.

A PEC 215, por exemplo, transfere do governo federal para o Congresso a atribuição de oficializar terras indígenas, unidades de conservação e territórios quilombolas. Se aprovada, a PEC vai paralisar de vez a regularização dessas áreas e abrir brechas para rever as demarcações já realizadas, incluindo o próprio Parque Indígena do Xingu.

A portaria 301 da Advocacia Geral da União (portanto, do executivo) pretendia que o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas poderiam ser relativizados sempre que houvesse relevante interesse público da União, o que não impediria a instalação de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos. Essa portaria foi suspensa temporariamente, mas denota a forma como o governo tem tratado a questão indígena.

Na atenção à saúde indígena, embora com mais recursos do que em tempos passados, a situação também não é boa. Os indicadores médios de mortalidade infantil e materna, assim como as taxas médias de incidência de tuberculose e outras doenças infectocontagiosas, são duas a três vezes maiores entre os indígenas do que na população brasileira como um todo.

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Douglas Rodrigues, médico sanitarista, em atendimento na aldeia Samaúma

 

E. A Usina de Belo Monte, que represará um trecho do rio Xingu no Estado do Pará, acarretará prejuízos aos povos xinguanos?

P.X. Desconheço estudos do impacto que Belo Monte terá na região das cabeceiras do rio Xingu, onde fica o PIX. Especialistas têm afirmado que algumas espécies de peixes e quelônios serão afetadas. Belo Monte está sendo considerada um cavalo de troia, já que outras barragens virão, alterando para pior a vida das comunidades amazônicas. Só em Altamira serão deslocadas 27 mil pessoas para dar lugar ao lago da usina. Houve um processo de cooptação dos indígenas antes do leilão, pela Eletronorte e as empresas construtoras, para que os povos da região afetada pela usina vissem o empreendimento como positivo. Isso gerou um conflito entre os grupos da bacia do Rio Xingu, já que muitos eram contrários às obras. Como eram povos razoavelmente isolados, abandonados pelo Estado e carentes de assistência, a cooptação foi relativamente fácil: a empresa passou a fornecer, na forma de “Projetos Emergenciais”, 30 mil reais por mês para as comunidades comprarem o que quisessem. Foi uma festa do consumo: centenas de motores, televisões de plasma, aparelhos de DVD, barcos. O impacto foi imenso, por exemplo, na nutrição. Grupos que possuíam a subsistência estruturada tiveram sua alimentação abalada. As roças pararam de ser produzidas ou diminuíram muito e a dependência deles aumentou.

Além de Belo Monte, estão planejadas pelo menos mais sete PCH (pequenas centrais hidrelétricas) nos formadores do rio Xingu. Uma delas, a PCH Paranatinga II já foi construída e seus impactos já estão sendo sentidos pelos indígenas. 

 

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Douglas Rodrigues em atendimento à índio idoso na aldeia Tuiararé, do povo Kaiabi

 

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Imagem abaixo:Lavínia Oliveira, coordenadora de Recursos Humanos do Projeto Xingu, em oficina de Saúde Indígena na sede do Projeto Xingu

E. Os povos indígenas têm se unido por meio de associações. De que forma essas associações ajudam na questão de seus direitos? Elas têm sido eficientes?

P.X. Existem inúmeras associações indígenas no país. Desde pequenas organizações, de aldeias ou grupos étnicos, até as de âmbito regional ou nacional, como é o caso da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB. Temos uma tendência a pensar sobre as associações indígenas com nosso modo de olhar, com nosso modelo de organização dos movimentos sociais, o que nem sempre é válido para o movimento indígena. Recentemente Ailton Krenak, importante liderança indígena e um dos fundadores da União das Nações Indígenas (UNI) nos anos 1980, em uma aula para os alunos do curso especialização em saúde indígena da Unifesp, disse que não se pode pensar em movimento indígena e sim em índios em movimento. As associações podem ser vistas como mais uma expressão desses “índios em movimento”. Suas lutas estão voltadas para as necessidades de cada etnia. Nesse sentido, as associações têm se mobilizado em várias direções, tanto para trazer projetos de sustentabilidade e valorização da cultura, como já dissemos, como na reivindicação dos seus direitos. Em alguns momentos, como na Constituinte, ocorrem grandes convergências gerando amplas mobilizações. Um exemplo atual é o Abril indígena. Nesse sentido, as associações têm se mobilizado em várias direções, tanto para trazer projetos de sustentabilidade e valorização da cultura, como já dissemos, como nessa questão política e de reivindicação dos seus direitos. 

A respeito da eficiência, vai depender da relação e do diálogo do governo com o movimento indígena. O espaço para tal diálogo nos últimos anos está bastante reduzido, o que é preocupante. 

 

E. As políticas públicas do governo – como bolsa-família e distribuição de cestas básicas – também alcançam as comunidades indígenas?

P.X. – Sim, e de forma indiscriminada, beneficiando alguns e prejudicando outros. Para entender melhor, precisamos saber onde e como vivem os indígenas. Dos cerca de 500 mil aldeados existentes no Brasil, 40% vivem em apenas 2% das terras indígenas demarcadas, especialmente nas regiões mais próximas do litoral, do Nordeste ao Sul do país, que foi onde a colonização teve início. Já 60% dos indígenas aldeados vivem em 98% das terras indígenas demarcadas a partir da Constituição de 1988. Aqueles que vivem espremidos em pequenos territórios, como é o caso dos Guarani do município de São Paulo, não tem nem como sobreviver da forma tradicional, já que não tem terra suficiente para isso e nem acesso ao mercado de trabalho. Para essas comunidades, tanto o bolsa-família como as cestas básicas podem fazer grande diferença, para melhor. Já os 60% que vivem nos 98% das terras indígenas, todas na Amazônia, ainda têm sua subsistência estruturada e baseada na agricultura, caça, pesca e coleta de produtos da floresta. Para esses, as cestas e o bolsa-família podem ser catastróficos, pois desestruturam sua economia e induzem ao consumo de produtos industrializados com graves consequências para sua saúde, como já comentamos anteriormente. Além disso, diminuem a autonomia das comunidades. Esses programas e benefícios sociais seriam bem-vindos se fossem formulados junto com as comunidades e adaptados às diferentes realidades. Por exemplo, a merenda escolar, em muitas escolas indígenas das aldeias, tem sido comprada na cidade com alimentos industrializados, que nada tem a ver com a alimentação tradicional. Hoje muitos professores indígenas, junto com as lideranças, têm pactuado com municípios ou Estados para comprarem a merenda dos próprios territórios, dos produtores locais, trazendo com isso a dieta tradicional de volta para dentro da sala de aula e valorizando o alimento e culinária local. Outro problema é o auxílio maternidade. Para obter o auxílio maternidade as mulheres devem ter seu parto na cidade. Com isso perdem o acompanhamento das parteiras, de sua família, perdem também os ritos de pertencimento relacionados à placenta e ao recém-nascido que eram realizados nas aldeias.

Entretesses05 p045 lavinia oliveira

Lavínia Oliveira em aula na Escola Paulista de Enfermagem (EPE/Unifesp)

E. O contato com a sociedade dita civilizada e a decorrente incorporação de elementos dessa cultura têm provocado, nas novas gerações dos indivíduos que compõem as etnias, o desejo de abandonar as tradições e costumes próprios, com a efetiva adesão aos padrões culturais externos? Ou existe, de forma hegemônica, o desejo de preservação das formas tradicionais de vida? 

P.X. Inicialmente pontuamos que o termo aculturação é equivocado. É preciso raciocinar a partir de uma noção dinâmica de cultura. Qualquer cultura está em movimento e mudança constante. Não podemos afirmar, a partir de um olhar externo, que os indígenas “perdem” a cultura. O exemplo mais vivo é dos Guarani, que estão em contato no Estado de São Paulo com o colonizador há mais de 500 anos, trabalham e vivem na periferia das cidades com péssimas condições de vida e não perderam sua língua, costumes e tradições. Muitas vezes essas marcas estão menos visíveis ao olhar dos não indígenas. Os jovens indígenas no Brasil todo, e particularmente nas localidades mais próximas dos grandes centros, têm acesso à escolarização, trabalho e tecnologia. Isso não os faz perder a identidade, é apenas uma mudança. É claro que conflitos existem, mas não sabemos se podemos ou devemos interferir nessa dinâmica. Temos percebido, no entanto, que os conflitos são maiores quando existe uma fissura no tecido social daquela aldeia ou daquele povo. Quando morrem suas lideranças mais velhas, quando perdem a referência, quando estão em situação de risco iminente como no caso dos Guarani Kaiowa no Mato Grosso do Sul, os conflitos se acentuam, o uso abusivo de bebidas alcoólicas, a violência e o suicídio aparecem. Principalmente entre os jovens. 

Por outro lado, ressaltamos que existem povos ainda isolados, sem nenhum acesso à sociedade nacional e muitos em estágio intermediário de contato. Esses povos têm alta vulnerabilidade a doenças infectocontagiosas consequentes do contato. Em contatos com povos isolados feitos nas décadas de 1960 e 1970 grupos inteiros foram extintos. Entre os Panará, povo acompanhado pelo Projeto Xingu desde o contato, a mortalidade no processo de aproximação foi de mais de 80% da população por doenças comuns como infeções respiratórias e gastrointestinais. 

Parece sensato, do ponto de vista político, promover mecanismos de acesso dos indígenas a áreas sociais estratégicas como o ensino, por exemplo, por meio do sistema de cotas ou à saúde pela atenção diferenciada a que se propõe o subsistema de atenção à saúde indígena do Sistema Único de Saúde (SUS).  Entre nosso imaginário sobre o mundo indígena e a realidade existe um fosso. Muitas vezes os problemas de saúde nele se manifestam. É nosso dever percebê-los e atuar, não no sentido de preservar alguma coisa, mas talvez de preservar a própria vida.

grafismo xingu 04
Publicado em Edição 05
Sábado, 10 Outubro 2015 13:03

Sinergia entre povos

Perfil: Roberto Baruzzi

Da redação

grafismo xingu 03
Entretesses05 p035 perfil roberto baruzzi

Imagem acima - Professor Baruzzi no Departamento de Medicina Preventiva da EPM, discutindo estratégias da primeira viagem ao PIX (julho de 1965)

Em 1962, o jornal A Gazeta – à época de grande circulação em São Paulo – publicou uma notícia sobre a caravana médica do doutor Oswaldo Monteiro, que estava de partida para a região do Araguaia com o objetivo de atender à população ribeirinha. Aquela matéria despertou a atenção de Roberto Geraldo Baruzzi, professor titular aposentado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e idealizador do Projeto Xingu. 

Depois de algum tempo, por acaso ou sorte, conheceu Monteiro em uma visita ao departamento médico da Caixa Econômica Federal, onde atuava desde 1957. “Falei que havia ficado sabendo da expedição e, de imediato, ele me convidou para participar da próxima”.

No ano seguinte, Baruzzi, que é especialista em Medicina Tropical pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Medicina Preventiva pela Unifesp, já estava integrado à equipe da caravana. Os participantes dividiam-se em grupos que eram transportados pelo avião da Força Aérea Brasileira (FAB) até determinados lugares, onde atendiam os povos indígenas. Santa Terezinha, localizada em Mato Grosso, foi seu primeiro destino, prestando assistência aos índios Tapirapé. 

Entretanto, a viagem de 1964 foi a mais importante, quando assumiu a coordenação da expedição a pedido de Monteiro. Foi um momento também de novas ideias. Na volta para São Paulo, depois de ficar com os índios Caiapó e Carajá, a rota fez um pequeno desvio para deixar um piloto no posto de Leonardo Villas Bôas no Xingu. Enquanto esperavam em terras, um desconhecido – que soube depois se tratar do próprio Leonardo – aproximou-se e perguntou se existia alguém para atender um enfermo. O próprio Baruzzi se prontificou a ajudar. “Fiquei intrigado, queria conhecer mais o trabalho dos Villas Bôas”. 

Depois do episódio, várias tentativas foram feitas para encontrar os irmãos, mas sem sucesso. No entanto, como se o destino o acompanhasse, Orlando Villas Bôas apareceu na Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp). O diretor do Parque Indígena do Xingu (PIX) se interessou pela participação da escola no Araguaia. Propôs, assim, um convite: organizar uma equipe para avaliar as condições de saúde daqueles povos indígenas. Nascia, então, o Projeto Xingu. 

O primeiro programa de extensão da EPM/Unifesp, pioneiro na linha de assistência médica, baseava-se em três pilares: plano de saúde contínuo, sistema de vacinação e abertura do Hospital São Paulo (HSP/HU/Unifesp) como retaguarda para casos extremos. No início, as caravanas eram realizadas quatro vezes ao ano e a primeira delas se deu em 1965, com oito integrantes levados pela FAB. 

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Imagem acima: Professor Baruzzi entre índios alto xinguanos
Imagem abaixo, à esquerda: Professor Baruzzi e Orlando Villas Bôas no posto indígena Leonardo, no Alto Xingu
Imagem abaixo, à direita: Professor Baruzzi durante pesquisa com índia Panará, na aldeia Nãcepotiti

Nas primeiras viagens, o principal objetivo era examinar e entender qual era a situação da saúde e os principais problemas. Após esse mapeamento, a prioridade foi a vacinação, principalmente porque os índios estavam totalmente vulneráveis às doenças para as quais já existiam vacinas. Além de levar a imunização a todas as aldeias, a equipe prestava assistência médica, curativa e preventiva, com atendimento às queixas, além de acompanhamento de gestantes e recém- -nascidos. A equipe fazia o cadastramento de todos os indivíduos, criando prontuários especiais organizados por famílias nucleares e ampliadas, por aldeia e por etnia, estratégia que perdura até os dias de hoje.

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Fichas médicas utilizadas no trabalho de campo

De acordo com Baruzzi, a situação encontrada pelos profissionais da área da saúde no local foi difícil. A introdução da ficha médica, com número de registro, foto, dados pessoais, dados clínicos e lista de vacinas foi necessária para um melhor atendimento. “Tínhamos um perfil de cada aldeia. Chamávamos índio por índio para o exame e, quando não apareciam para a consulta, íamos até suas casas. Às vezes, estavam doentes ou não queriam ser atendidos. Existiam também aqueles em reclusão pubertária”.

A reclusão referida por Baruzzi é um rito de passagem comum em 10 dos 17 povos do Parque Xingu, que visa o desenvolvimento social, psicológico e físico do adolescente e sua inserção à vida adulta. Entre as meninas, a reclusão ocorre logo após a menarca para, entre outras razões, evitar o relacionamento sexual e fortalecer o corpo para a futura maternidade. Já os meninos são afastados para torná-los fortes para luta e resistentes para desempenhar as funções masculinas. A reclusão pode variar de vários meses até um ano entre as meninas e de até três anos para os meninos, principalmente se ele estiver sendo preparado para um futuro cargo de chefia.

Cada contato com os povos era feito cuidadosamente. Os pajés, figuras lendárias, criaram uma sinergia com a equipe. “Nunca houve problemas. Não fomos competir com a Medicina deles e eles respeitavam a nossa. O índio tinha liberdade para ir ao médico ou pajé”. Um episódio mostra claramente esse relacionamento. Depois de comer uma bela peixada, Baruzzi começou a passar mal. Era gastroenterite e ele repousou três dias na rede. “Eu ia para o mato de vez em quando e as crianças falavam: ‘Ih, Baruzzi perdeu a barriga!’ Realmente fiquei bem magro”. Mais tarde, após várias tentativas com o chá de folha de goiabeira, uma pajelança foi feita. “O grande pajé fazia gestos, passava a mão na minha barriga, assoprava e cantava. Naquela noite, já estava bom”.

A partir das primeiras visitas, o programa só foi se fortificando, estreitando ainda mais seus laços com as aldeias. Foi um novo conceito médico-pedagógico formado, mostrando um outro sistema de vida, e a EPM incorporava, assim, a cultura xinguana. “A minha marca na escola acabou sendo o Projeto Xingu”. O relacionamento com os irmãos Villas Bôas também se fortaleceu. O próprio Orlando participou, por vários anos, da aula inaugural do curso médico.

Hoje, aos 86 anos, Baruzzi está organizando seu passado. É meio século de um acervo que conta com fotos, materiais audiovisuais e peças artesanais que documentam o trabalho do Projeto Xingu. É a reconstrução de uma vocação que transcendeu a diferença cultural e resultou, além de tudo, em amizade.

Sobre o início de sua atuação no Parque Indígena do Xingu, o Dr. Baruzzi comentou: “Eu estava preparado para esse trabalho do ponto de vista clínico, mas não tinha experiência com o índio. Essa aproximação cultural foi muito interessante. Nunca imaginei que a leitura de uma notícia poderia desencadear em um programa de tamanha dimensão”, finaliza.

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Publicado em Edição 05
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