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Quarta, 08 Dezembro 2021 17:46

“Uma oportunidade ímpar de aprendizado”

Enfermeira-chefe da UTI do Hospital São Paulo relata os desafios na linha de frente contra a covid-19

Publicado em Edição 14
Quinta, 02 Dezembro 2021 16:18

Um trabalho que recompensa

Nancy Bellei, infectologista, pesquisadora e docente da Unifesp, estuda vírus respiratórios há mais de 20 anos e acompanhou a pandemia de covid-19 desde o início. Bellei é uma das principais fontes sobre a questão no país e seus estudos a tornaram também uma das maiores agentes no enfrentamento da crise sanitária

Publicado em Edição 14

Docente de Didática na Unesp, Luciana Massi defende necessidade de apoio institucional aos orientadores de projetos de IC na graduação sob a perspectiva formativa

Publicado em Edição 13

Médico epidemiologista, ex-reitor da UFBA e da UFSB e professor visitante do IEA/USP, Naomar de Almeida Filho abordou os caminhos enfrentados pela extensão universitária nas instituições públicas de ensino superior brasileiras

Texto: Valquíria Carnaúba

Naomar de Almeida Filho, docente no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ex-reitor da instituição e da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP), é um grande crítico do verdadeiro papel da extensão universitária no Brasil. Em entrevista à Entreteses, Almeida Filho abordou, de maneira central, a dificuldade de a extensão universitária ser de fato incorporada à verdadeira missão das universidades públicas. Define extensão universitária como "a atuação da instituição junto à sociedade, à comunidade, fora dos muros da universidade. Por meio de projetos (duração finita) e programas (duração por tempo indeterminado), o pesquisador produz conhecimento sobre um determinado assunto, desenvolve aplicações e o traduz para que seja efetivo na solução de problemas”. Também sua vivência na área médica, onde o controle e a prevenção de doenças são considerados extensão da medicina tradicional, ajudou a fundamentar seus conceitos. Para ele, ainda que a Constituição Federal disserte sobre a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão - as três bases da educação superior - esse terceiro pilar persiste com um certo viés de marginalidade, já que é trabalhado pelas universidades públicas de modo menos intenso em relação aos demais e, por fim, ainda carece de um orçamento próprio para a contratação de bolsistas e o desenvolvimento de suas ações. Almeida Filho discorreu ainda sobre o limiar entre extensão universitária e assistencialismo, autonomia universitária e os caminhos que se apresentam às ações extensionistas frente ao contexto atual.

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Para Almeida Filho, museus, orquestras sinfônicas, corais e ginásios de esportes são ações de extensão que permitem à universidade retornar uma demanda social, já que não consegue absorver todos os jovens que almejam a educação superior (Fotografia: Alex Reipert)


Entreteses • Existe confusão entre os conceitos extensão universitária, filantropia e assistencialismo?

Naomar de Almeida Filho • É na extensão que identifico uma dificuldade maior da universidade se reconhecer. E como a extensão não é priorizada na missão orgânica das instituições, também não está prevista nos seus orçamentos - com exceção da prestação de serviços e atividades na área da saúde, como os hospitais universitários. As verbas orçamentárias destinam-se exclusivamente ao ensino; já as fontes para pesquisa advêm das agências públicas de fomento (Finep, Capes e Cnpq). Temos, por um lado, em algumas universidades, atividades artísticas e culturais sendo definidas como extensão, quando o conceito não se aplica, pois se trata de uma parte da função criativa da vida acadêmica. Já no caso dos hospitais, a sociedade tem maior propensão a considerá-los como a grande contribuição social de uma universidade, um direito dos sujeitos. Há também os museus, uma outra forma de extensão pensada de modo a sintetizar ou representar a realidade externa. Toda grande universidade no mundo tem seus museus, assim como orquestras sinfônicas, corais, hospitais universitários, ginásios de esportes, ou seja, atividades que fazem essa ligação da universidade com a sociedade. São formas de a instituição retornar uma demanda social, já que a universidade não consegue absorver todos os jovens que estão precisando da educação superior, reservando pequenos fragmentos de sua excelência e os estendendo aos demais. É interessante refletir que a extensão se apresenta, muitas vezes, como a única forma de fazer quem está fora da universidade se fazer ouvir, permitindo o diálogo. Nesse sentido, é raro um programa ou projeto de extensão ser uma ação que pergunta; costuma-se na extensão fornecer de imediato uma solução, em vez de ser algo mais exploratório, dialógico. Essa discussão incorpora, inclusive, o aspecto político da extensão. Em tese, as universidades têm uma missão civilizatória, de modo a não impor a transformação, mas relacionando-se com a sociedade com uma postura mais modesta.


E. Como citou o caso dos hospitais universitários, entende que a sociedade ainda tem dificuldade de visualizar as ações de extensão universitária como um direito?

N.A.F. Sim, mas a responsabilidade é, em parte, da própria universidade, pois são realizadas quase como uma concessão da instituição. Há movimentos meritórios que buscam reverter essa ideia, adotando um posicionamento mais crítico que visa integrar universidade e extensão, mas são casos isolados, não regra geral. As expectativas da sociedade se orientam não pela vanguarda, mas pelo que dá resultados de modo certo e seguro. As pesquisas, ainda que inovadoras, muitas vezes voltam-se a aplicações mais simples e conectadas com o cotidiano. O mesmo deveria acontecer com a extensão que, a depender do projeto ou programa, pode se caracterizar como pesquisa/ação, tratando de singularidades quando deveria ter como foco universalidades. Na atividade extensionista, não há um interesse científico declarado, comum na pesquisa convencional, o que leva a extensão a se tornar quase que um subproduto institucional. Mas muitas dessas ações definem a ciência de um modo socialmente responsável, e a expressão “inovação social” é muito feliz para resumir esse conceito. Minha posição é essa: o que a gente lista como atividade nobre da universidade, pesquisa, é em grande parte exercida sem registros, sistematização e reflexão, perdendo-se nos relatórios. Há, por outro lado, uma grande dificuldade em reconhecer que uma ação de promoção de valores sociais ou uma atividade que religa as pessoas (que podem ser chamados de trabalho de extensão) pode ser geradora de um volume considerável de conhecimento - etnográfico, antropológico, artístico, histórico e cultural. 


E. A curricularização das ações de extensão é um dos caminhos para a integração à missão da universidade?

N.A.F. É uma maneira institucional, mas convencional, de se produzir um valor para a extensão. É o que torna aquela ação integrável ao histórico escolar dos estudantes, um reconhecimento de que aquela atividade equivale a uma disciplina ou curso. Acredito que outro caminho mais interessante seria a abertura ampla dos currículos, e as atividades que produzam aprendizado serem reconhecidas como tal, sem a obrigatoriedade de as horas de extensão serem cumpridas como aula. No processo de aprendizagem, as pessoas são diferentes entre si. Para alguns estudantes, não adianta três mil horas de prática se eles não estiverem incorporando aquele ato, e a reflexão sobre a ação, como conhecimento. É bom pensar bem; precisa ter um tempo para sair daquela atividade e digerir tudo.


E. Em um seminário na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2017, você defendeu que as instituições públicas de ensino superior devem ter liberdade em relação aos processos de governança e capacidade de traçar seus próprios destinos. Ainda na ocasião, lembrou que as universidades têm grande dificuldade de admitir que precisam incorporar a sociedade na sua gestão, no seu cotidiano, exigindo uma ampla reforma no ensino superior em pleno século XXI. O que deveria ser necessariamente modificado?

N.A.F. As universidades, mesmo aquelas com postura politicamente mais engajada, não abrem seus espaços de gestão para que a sociedade participe. No máximo, dois ou três lugares em um conselho universitário com 60-70 membros, fazendo com que os espaços de governança tornem a sociedade minoria nas decisões. Reforça-se, assim, a gestão universitária como pública por ser estatal, que presta contas “justificando” sua existência. Nessa lacuna se insere a liberdade acadêmica no sentido da autonomia institucional, que em diferentes contextos ganha definições distintas. No Brasil, as instituições públicas pertencem ao Estado, que dita o que a universidade pode fazer ou não – e isso se aplica da contabilidade à escolha dos dirigentes. Claro, se somos parte do Estado, as regras da gestão administrativa pública se aplicam, e isso é um problema. O Brasil tem algumas experiências de autonomia relativa em gestão financeira, como as universidades paulistas, com uma porção de seu orçamento definida de acordo com o percentual de arrecadação [de impostos]. Já as universidades federais dependem de uma parcela do orçamento do Ministério da Educação (MEC) e são caracterizadas pela vinculação dos sujeitos como funcionários federais – os servidores compõem a carreira do serviço público. Tenho defendido que precisamos ter mais clareza sobre por qual autonomia se luta, mas ela não vingará se nos mantivermos submissos à folha de pagamento do governo federal. Outros países construíram suas alternativas adotando modelos fundacionais. Os Estados Unidos (EUA), por exemplo, não possuem nenhuma universidade estatal, ainda que muitas sejam públicas por suas verbas advirem do Estado. No Canadá, embora o orçamento seja público e repasses de verbas ocorram mediante metas, as universidades também não são estatais. Portugal, por sua vez, resolveu a situação criando o ente jurídico chamado universidade pública. Onde tem dinamismo na produção de ciência, conhecimento e cultura, as universidades encontram-se desvinculadas do Estado, são de fato autônomas. Temos agora que descobrir o nosso modelo ideal. Sendo parte do Estado, as universidades federais brasileiras padecem de uma contradição de base em sua missão: a principal regra da administração pública é poder fazer somente o que está na norma, e isso é a morte da universidade, pois nesse registro nada pode ser criado. Suas regras dependem de limites externos. Tornando essa questão mais central, penso que a ideia de autonomia que temos no país é uma distorção do verdadeiro conceito, aproximando-se mais da velha liberdade de cátedra, ou seja, a liberdade de definir o que o professor ensina. Nesse aspecto, há uma certa confusão como pauta política, pois nisso não se distingue a autonomia institucional da liberdade individual. Defender o individualismo de modo algum representa uma reivindicação progressista e democrática. Outra discussão que considero delicada é o fato de as universidades estatais no Brasil estarem a serviço dos interesses privados, porque formamos projetos de vida para sujeitos individuais, muitos definidos por suas mitologias familiares. Apesar da inegável abertura recente do acesso, com a expansão e com as cotas, que de fato mudaram o cenário das universidades públicas brasileiras, quem mais aproveita delas é um segmento social que domina a política e a economia e tem a universidade como a continuidade das próximas gerações. A pergunta que persiste é a seguinte: esses segmentos sociais que conquistaram essa chance de ascensão social estão recebendo da instituição uma aprendizagem libertadora ou terminam sendo cooptados a se tornarem parte dessa elite? 


E. Na sua opinião, qual o futuro da extensão nas universidades federais brasileiras considerando quatro fatores: retorno social (impostos), o patamar atual da educação básica, os cortes orçamentários e a visão da sociedade sobre o papel da universidade pública?

N.A.F. Tudo isso faz parte de um ataque especulativo contra a universidade pública brasileira feito por um governo de viés totalitário, anti-intelectual e empenhado no que chamam de guerra cultural. Não haverá futuro para a extensão se não houver horizonte de futuro para a universidade. Partindo do primeiro aspecto, consideremos a pauta que coloca a cobrança de mensalidades e anuidades nas universidades públicas. Para mim, há dois argumentos que, a meu ver, vão contra essa proposta. Por um lado, porque isso não vai resolver o problema orçamentário. No Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), por exemplo, apenas 10% do seu orçamento é coberto por mensalidades. Aqui no Brasil, foi efetuado um cálculo por meio do qual se chegou à estimativa de que as mensalidades cobririam aproximadamente 18% do orçamento total. Por outro lado, este é um modelo de financiamento que pode terminar aumentando a exclusão de alguns segmentos sociais da educação superior. Ainda assim, são argumentos politicamente pouco eficientes para se contrapor a essa cobrança. A expressão retorno social do investimento público dá a impressão de que as pessoas que fazem a cessão de parte de sua renda ao Estado nacional são as mesmas que recebem esse benefício. O retorno social não se aplica nesse caso, pois quem mais paga para sustentar o Estado não está na universidade, mesmo com todo o esforço recente pela inclusão social na educação. O sistema tributário brasileiro é de uma regressividade absurda, fazendo com que os sujeitos de baixa renda paguem proporcionalmente mais imposto do que os que têm ganhos elevados. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) tem sucessivos estudos que revelam que, quanto maior a renda da pessoa física, menor é o pagamento proporcional de impostos. As famílias que ganham menos de três salários mínimos comprometem 56% de sua renda em impostos e aqueles que ganham mais de 20 salários mínimos pagam menos de 20% em impostos, em parte pelo sistema de restituição de imposto de renda por despesas educacionais para dependentes de até 24 anos. Mesmo quem não tem uma renda satisfatória acaba consumindo boa parte dela para sobreviver, ao comprar roupa, comida, usar transportes públicos. Temos um sistema de distribuição de renda absolutamente perverso; quem tem renda paga uma escola privada de ensino médio para que os filhos passem pelo “superfiltro” seletivo das universidades públicas. Quem sustenta o ensino privado são os pobres, pois não adentram as universidades gratuitas, e aos que permanecem no ensino médio público restam as vagas no ensino superior privado, onde muitos se endividam. Os pobres são aqueles que, ao consumirem para sobreviver, estão pagando a retribuição que o Estado faz aos que possuem poder de compra elevado. É como se a universidade pública se consolidasse como um grande dispositivo de propagação da desigualdade social, inclusive ofertando formação de melhor qualidade nas profissões mais valorizadas no mercado de trabalho. 


E. E a questão da educação básica, não seria um foco prioritário da extensão?

N.A.F. A maior ação de responsabilidade social das federais brasileiras realmente seria o comprometimento com a melhoria da péssima qualidade da escola pública na educação básica, outra das perversões nacionais. A maior parte dos docentes que atuam na rede pública é formada no setor privado e, por outro lado, a excelência das universidades públicas coloca os seus licenciados no setor privado. O maior programa de extensão das universidades públicas brasileiras deveria ser formar professores da educação básica. Hoje, o número de licenciaturas ofertadas pelas universidades federais é pequeno, ao passo que a evasão é alta – em alguns casos chega a 60%. O pouco investimento institucional na formação de professores e a prioridade na formação de profissionais é um grave problema político para as universidades públicas brasileiras. Enfim, formação de quais perfis profissionais e em benefício de quem? Pensar nisso é um esforço que vale a pena, pois quando politizamos esse problema, revela-se na extensão uma patologia na relação da universidade com a sociedade, historicamente estabelecida como colonial, baseada na escravatura, que promove uma imensa desigualdade social. E a universidade pública tem ajudado a preservar e reproduzir esse modelo.

 
Publicado em Edição 12

A reitora, Soraya Smaili, faz um balanço dos 25 anos da universidade e fala sobre as perspectivas para o futuro

Texto: José Luiz Guerra

Uma universidade jovem, mas que traz consigo a responsabilidade de passar para os cursos das demais áreas do conhecimento a qualidade e a tradição da área da saúde, de onde a Unifesp se originou. 

Ao longo desses 25 anos, pouco mais de 10 deles como uma universidade plena, abrangendo cursos de vários campos do saber, a instituição já obteve algumas conquistas, dentre as quais pode-se destacar o recredenciamento com nota máxima e as avaliações feitas por rankings internacionais, como o Times Higher Education (THE), que colocou a Unifesp entre as melhores instituições da América Latina e a melhor universidade federal do país por mais de uma vez. Já em relação aos desafios, pode-se destacar o da consolidação, em especial da infraestrutura dos campi da expansão. 

Entrevistamos a reitora da Unifesp, Soraya Smaili, que traçou um panorama da universidade ao longo desse período e indicou os caminhos pelos quais a instituição pode trilhar para se manter sempre entre as melhores. Confira!

Retrato Soraya Smaili

Imagem: Alex Reipert/DCI-Unifesp

Entreteses • Em qual situação a Unifesp chega aos 25 anos?

Soraya Smaili • A Unifesp chega aos 25 anos na condição de uma universidade que é jovem e que ao mesmo tempo tem uma tradição muito grande da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), que completou 85 anos, e de onde a Unifesp se originou. Temos o privilégio e a sorte de termos a tradição junto com a juventude e a força do novo, do que podemos fazer e projetar com um futuro bastante promissor. É uma universidade que traz muitas coisas e ao mesmo tempo tem muitos desafios, porque essa juvenilidade também requer muita estrutura e muito conhecimento para que possa traçar direções e diretrizes mais firmes para a prospecção do futuro que temos pela frente. 

E. Quais foram as maiores contribuições da universidade para a sociedade e para o desenvolvimento científico do país?

S.S. São muitas. Nos campi São Paulo, Baixada Santista e Diadema desenvolvemos pesquisas nas áreas de saúde e de ciências da vida. Podemos citar conquistas recentes, como, por exemplo, as contribuições para o diagnóstico do Zika vírus, na área de células tronco, no diagnóstico, tratamento e novas terapias da Aids, em métodos cirúrgicos, na área de queimados e em duas áreas estratégicas, não só para o Brasil, como para o mundo, que são o envelhecimento e a Oncologia. Na pesquisa básica temos contribuições na Bioquímica, Farmacologia, Microbiologia, Imunologia e Parasitologia, áreas nas quais cientistas estudam experimentalmente novas terapias para doenças negligenciadas. Também temos uma série de pesquisadores estudando mecanismos da célula importantes para o tratamento de diversas doenças, como as neurodegenerativas. 

Em outras áreas, podemos destacar a Ciência da Computação, que faz simulações, trabalhando com estratégias de estudos que envolvam aeronáutica, devido à proximidade que temos com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, as Engenharias de Materiais, Química e Biomédica, produzindo conhecimento na área de grandes equipamentos para diagnóstico por imagem, tratamento do câncer, promoção do bem-estar para o ser humano e aprimoramento na busca por novos materiais para indústria brasileira como um todo, como a impressão 3D, produzindo próteses. 

As engenharias Ambiental e do Mar trabalham para melhoria da pesca e da qualidade da água, para identificação de poluentes e para tratamento da água do mar, já com bastante resultados. Nas licenciaturas, podemos destacar as áreas de Ciências, Física, Matemática, Biologia, além da área das Ciências Humanas Aplicadas, como é o caso de Osasco. No Campus Guarulhos, os cursos de humanidades trabalham tanto no contexto da formação de professores quanto na produção do conhecimento. 

Soraya Smaili falando à frente da platéia

II Oficina para discussão do Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) 2016-2020 / Imagem: José Luiz Guerra

Mais pesquisa, melhor ensino e mais democracia

E. A sua gestão foi eleita, em 2012, com uma proposta de assegurar a pluralidade e a democracia universitária. Essas propostas, é claro, foram resultado de uma avaliação sobre a Unifesp. Que avaliação era essa? Hoje, decorridos cinco anos, mudou o panorama?

S.S. Esse era um dos eixos da nossa proposta para a Reitoria, quando nos candidatamos, e continuou na primeira e na segunda gestão. Nesses quase 6 anos, a democracia e a pluralidade foram eixos centrais. Em termos práticos, entendo que nós passamos a um processo de organização interna, inclusive refletido nos estatutos da Unifesp, e em regramentos internos que possibilitaram maior participação dos TAEs, estudantes e docentes. Temos hoje processos internos melhores estabelecidos, mais claros e mais transparentes, na minha avaliação, obviamente. Consolidamos processos internos de participação, de consulta pública. 

O Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) e o Projeto Pedagógico Institucional (PPI) foram participativos. Como estratégias de gestão, promovemos audiências públicas, plenárias, congregações abertas e temos feito esforços para tornar os conselhos muito mais condizentes com as representações. O Conselho de Assuntos Estudantis (CAE), por exemplo, é composto por mais estudantes do que antes, assim como o Conselho de Planejamento e Administração (Coplad), que hoje conta com maior participação de TAEs. Eles têm que estar envolvidos com a administração da universidade, com o planejamento. 

No caso do Conpessoas, é um conselho paritário, pois envolve boa parte do pessoal permanente. Nós procuramos fazer conselhos que sejam mais condizentes, para além de estabelecer percentuais de 70/30 ou paritários, que fossem inteligentes, apropriados para a atividade daquela pró-reitoria ou com a atividade daquele conselho ou área, no caso do ensino, pesquisa e extensão. Além disso, entendo que tivemos um processo que não tem mais volta, que é a transparência dos orçamentos. É algo muito positivo, pois nós passamos a dar clareza a todos os procedimentos orçamentários. As pessoas foram se apropriando do que é o orçamento, como ele é executado, quais são as nossas dificuldades, e isso foi bom, pois elas compreendem mais. 

É uma área muito técnica, mas não está desacoplada da política. Essa parte técnica é muito importante para nós entendermos como está o financiamento da universidade como um todo, porque nós tivemos cortes, porque tivemos que adequar estruturas à nova realidade nos últimos dois anos. Vejo como muito positiva toda transparência que nós demos aos procedimentos de orçamento e de administração. Além disso, nós também passamos a ter processos de criação dos projetos pedagógicos muito mais discutidos e abertos; o mesmo ocorre com os projetos de pesquisas, por exemplo.

Criamos as grandes áreas de pesquisas e passamos a fazer chamamentos aos pesquisadores para que eles pudessem se juntar mais às diferentes áreas para desenvolverem grandes temas, como o próprio tema da oncologia, que eu citei aqui, mas também o tema das cidades, dos estudos contemporâneos, da formação de professores, de análises ambientais e da sustentabilidade e do meio ambiente, o tema da tecnologia e da inovação tecnológica. 

Nós já temos uma política de inovação tecnológica e isso é um grande feito para todos nós na Unifesp e vamos dar muitos saltos ainda nessa área, muito desenvolvimento no decorrer desses próximos anos de 2019 e 2020, até o final da nossa gestão e daí por diante. São feitos realmente que complementam toda essa parte dos processos democráticos. Na verdade, nós aprimoramos esses processos e a pluralidade, a escuta dos diversos setores, de diversos atores de nossa comunidade para fazermos melhor o ensino, a pesquisa e a extensão. 

Esse é o objetivo final, e não simplesmente tornar a universidade mais democrática para termos a democracia, que por si só já se justifica, mas o processo de democratização interna e externa e de pluralidade das ideias e dos projetos. O objetivo maior é sempre a melhor formação do estudante, a melhor pesquisa e produção de conhecimento e a melhor possibilidade de transferir isso para a sociedade, que é o que a gente faz com a extensão.

E. Quais os principais desafios enfrentados pela universidade durante o processo de instalação dos novos campi? 

S.S. Passamos por uma grande expansão, na qual crescemos 800% em um período de 8 anos. Atualmente estamos em um período de consolidação. O primeiro desafio foi crescer tanto em tão pouco tempo. O segundo foi solidar a ampliação. E isso significa ter bons professores, bons TAEs, um quadro permanente de muita qualidade, equipamentos, infraestrutura e bibliotecas. Os primeiros campi da expansão tiveram uma primeira parte da estrutura em Santos, Guarulhos e São José dos Campos e estamos finalizando a fase de infraestrutura básica de Diadema e de Osasco. 

Além disso, precisávamos pensar no Campus São Paulo, onde estão a EPM/Unifesp e Escola Paulista de Enfermagem (EPE/Unifesp), e tem a ligação com o Hospital São Paulo (HSP/HU/Unifesp) e com o Hospital Universitário 2 (HU2/Unifesp), para não deixarmos de ter a qualidade que sempre as caracterizou. Trabalhamos com o Plano Diretor de Infraestrutura no Campus São Paulo para consolidação de um campus que tem tradição, mas que precisa de condições para manter a qualidade dos nossos cursos, da pesquisa e da extensão.

E. Em termos amplos e gerais, como a senhora caracterizaria as políticas públicas do governo para as universidades federais nos últimos 25 anos? É possível perceber algum padrão, alguma tendência geral?

S.S. Quando a Unifesp foi criada, em 1994, eu era conselheira do Conselho Universitário (Consu), participei da elaboração do primeiro estatuto da universidade e também dos seguintes. Percebo que internamente a tendência foi de construir processos e organizar a instituição como uma universidade de fato. Ela veio de uma escola departamental, grande e bastante complexa, mas que não tinha outras áreas do conhecimento no seu plano pedagógico. 

Tivemos que ter um projeto pedagógico mais amplo, dando um caráter universitário à EPM/Unifesp, que naquele momento era uma escola de ensino superior na área da saúde. Expandimos, inicialmente na graduação, ainda na área de saúde, na pesquisa, que já era de qualidade e tínhamos como objetivo continuar a ampliação da pós-graduação, da pesquisa e da assistência, que é muito forte desde o início da Unifesp. Depois percebemos um movimento claro e importante de expansão das universidades federais pelo país, que triplicaram a sua capacidade, passando de 400 mil para 1,2 milhão de estudantes. 

A Unifesp foi o reflexo dessa política nacional. Ela aceitou o desafio de fazer uma expansão a partir de 2005. Nesse período, passamos de 1,3 mil para 13 mil estudantes de graduação e de 2,5 mil para 5 mil de pós-graduação. Na extensão temos mais de 160 projetos sociais em toda a universidade, programas de extensão e especialização que já eram muitos e foram ampliados para todas as áreas do conhecimento. Passamos a ter projetos muito fortes e bem estruturados nas áreas de humanidades, na Pedagogia, na História, na Antropologia, que depois deu origem à Antropologia Forense, área na qual somos pioneiros devido ao trabalho que fazemos aqui na Unifesp. 

Além disso, estamos acrescentando o curso de Direito, que estamos aguardando a autorização para a abertura, tendo pesquisadores e professores que já estão contribuindo muito com a nossa instituição. A tendência atual é de transição. Não estamos vislumbrando que a expansão terá continuidade nesse momento, mas lutamos e estamos trabalhando para que ela se consolide cada vez mais e que as universidades permaneçam fortes nos seus projetos acadêmicos.

Soraya Smaili está com um microfone na mão

Cerimônia de entrega da primeira fase do Hospital Universitário 2 (HU2), na capital paulista / Imagem: Alex Reipert/DCI-Unifesp

“Temos que interagir mais com a sociedade”

E. De que forma as comunidades interna e externa podem contribuir para o fortalecimento da instituição?

S.S. A universidade é muito apoiada pela sociedade, pela sua qualidade e pelo caráter de suas pesquisas, voltadas para o bem-estar da população, por exemplo, na área da saúde pública. Quando você pergunta para a comunidade externa se ela apoia a universidade pública, ela diz que sim. Pesquisas de opinião já demonstraram isso. 90% da população, segundo a Idea Big Data (http://www.andifes.org.br/wp-content/uploads/2018/06/IDEIA-UniversidadesPublicas.pdf), apoiam a universidade pública e entendem ser um patrimônio do país. Ela sabe que nós fazemos coisas de qualidade e que são voltadas para o benefício da vida da pessoa humana e da sociedade brasileira. Temos muito apoio. O que precisamos fazer mais é nos comunicar mais com essa sociedade. 

Quando você pega os rankings das instituições públicas que são apoiadas pela população, os bombeiros estão em primeiro lugar e a educação pública está em quinto. Não estamos mal colocados. E esse prestígio junto à sociedade só tem aumentado nos últimos anos, só que nós podemos fazer mais. Podemos continuar nos comunicando mais, mostrando para a sociedade que o que fazemos com os recursos que são públicos é em prol da sociedade e que essa universidade é dela e está aqui para servi-la. Essa relação com a comunidade externa deve ser mais fortalecida e aprimorada. 

Em relação à comunidade interna, o que eu vejo é que nós temos que continuar promovendo a integração cada vez maior entre as diferentes áreas e entre as diferentes atividades de ensino, pesquisa e extensão, porque isso fortalece os profissionais que estamos formando, e também favorece a produção de conhecimento. A produção de uma pesquisa de um diagnóstico de um vírus, ou uma análise de uma água contaminada ou mesmo a formulação de uma política pública pelas Ciências Sociais, tudo isso pode contribuir enormemente para a sociedade, mas para que isso aconteça, é necessário que a nossa comunidade interaja cada vez mais para promover projetos e estudos que se transformem em benefícios maiores, ou seja, que gere mais conhecimento. Internamente, integrar mais. 

Com o público externo, comunicar mais. Dizer o que estamos fazendo e trazê-los para a universidade. Não é só ir lá e dizer, pois isso acaba sendo alguma coisa um tanto que autoritária. Só a gente dizer que professores vão em algum lugar e dão aula. Temos que trazer a população, porque nós também aprendemos com eles. Essa interação é muito rica e promove mais conhecimento.

E. A expansão da Unifesp enfrenta desafios para o acolhimento e a permanência de estudantes oriundos de outras regiões e com menor poder aquisitivo. Como a universidade os enfrentou até agora?

S.S. Tivemos uma política pública desenvolvida pelo governo federal que é o Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes). Temos também uma lei tramitando e gostaríamos que ela fosse aprovada, pois isso o fundamenta. Não são auxílios aleatórios, é um programa que dá apoio aos estudantes de baixíssima renda. Há uma análise socioeconômica e, por meio de editais transparentes e bastante democráticos, avaliados por profissionais altamente gabaritados, temos um sistema bastante sofisticado para apoiar aqueles que têm alta vulnerabilidade. 

Oferecemos diversos tipos de auxílios e aqueles que têm mais necessidades recebem auxílio maior. A Unifesp tem uma política de permanência muito bem consolidada. Nós soubemos desenvolver essa política em paralelo com a expansão e hoje podemos dizer que, com os recursos que temos do Pnaes, podemos dar conta, pelo menos, da parcela mais vulnerável que está na nossa comunidade hoje. Estamos nos esforçando muito para isso. 

Além disso, temos sistemas de núcleo de apoio aos estudantes em cada campus, vinculados a essa política e para além dos auxílios econômicos e financeiros, principalmente no que diz respeito ao serviço social, à psicologia e até mesmo à parte médica. Eles têm atendimento de especialidades no Serviço de Saúde do Corpo Discente (SSCD/Unifesp). Ademais, fazemos exames, com a colaboração preciosa que temos do Hospital São Paulo (HSP/HU/Unifesp) e dos hospitais afiliados da SPDM.

E. Em comparação com outras universidades federais, como a senhora avalia o ensino e a pesquisa na Unifesp?

S.S. Avalio como de enorme qualidade. Quando nós vemos os nossos programas pelos sistemas oficiais do Ministério da Educação (MEC), tanto o e-MEC como o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), vemos que nossos programas têm melhorado os seus conceitos. Praticamente todos os cursos de graduação têm conceitos 4 e 5, que são os mais altos. Obtivemos, em 2017, conceito máximo (5) no recredenciamento da universidade, o que foi um feito importante, por ter sido o primeiro depois da criação da Unifesp. Apenas 14 universidades federais no país têm esse conceito. É um feito fantástico. Além disso, a maioria dos nossos programas de pós-graduação têm conceitos 4 e 5 e uma parcela considerável tem conceito 6 e 7, que é o grupo de excelência, dos programas mais tradicionais, consolidados e antigos, alguns deles com quase 50 anos, criados junto com a pós-graduação no país, como os de Farmacologia e Bioquímica. Temos uma tradição muito grande na pesquisa que nos dá destaque, não só na área da saúde. Estamos muito bem colocados em áreas como Ciências Sociais e Engenharias.

Conseguimos, com tudo isso, alcançar o primeiro lugar em citações por docente. Isso é um feito fantástico, considerando a expansão que fizemos, o que significa que fizemos um crescimento com qualidade e somos a segunda em pesquisas, dependendo do sistema de classificação e ranqueamento. A expansão foi muito significativa em tão pouco tempo, mas ao mesmo tempo teve qualidade e se colocou entre as maiores universidades do nosso país. É importante salientar que antes da criação da Unifesp, nós não aparecíamos em nenhum sistema de avaliação, porque não éramos uma universidade. Sempre que avaliava a EPM, ela não conseguia atingir os critérios e parâmetros de universidade, pois era uma escola de uma área específica. A partir da criação da Unifesp, começamos a figurar como universidade e passamos, inicialmente, para o grupo das 10 primeiras e, agora, para o das 5, porque expandimos.

“A política de cotas garante a diversidade sem prejudicar a qualidade”

E. Que balanço a senhora faz da adoção do sistema de cotas raciais?

S.S. Nosso balanço é muito positivo, lembrando que a Unifesp foi uma das primeiras universidades públicas a adotar o sistema de cotas antes da lei federal, ofertando 10% das vagas nos cursos de graduação da época. Hoje, após a adoção da lei de cotas, vemos que elas nos possibilitaram que nós tivéssemos uma representação maior da sociedade brasileira, paulista e paulistana. O perfil socioeconômico dos nossos estudantes é parecido com o da própria sociedade do Estado de São Paulo: as faixas de renda, bem como os grupos raciais e os oriundos de escolas públicas. 

As cotas não foram simplesmente cotas, mas atreladas à escola pública. Depois disso, nós fizemos um processo de avaliação e verificamos que os cotistas foram muito bem avaliados e não há perda de qualidade do ensino e dos formandos, na comparação com os não cotistas. Outro aspecto bastante interessante é que hoje temos uma diversidade que traz uma riqueza e faz com que a universidade pública cumpra o seu papel social perante os grupos que tem ou tiveram menos favorecimento na sociedade.
Lembrando que os cotistas também passam pelos mesmos processos de ingressos que os demais. Muitas vezes as pessoas acham que são processos separados e que as vagas estão garantidas só por serem cotistas e isso não é verdade. Há avaliação tanto no ingresso quanto no egresso, quando os indivíduos saem da graduação.

 
Publicado em Edição 11

Segundo Renato Janine Ribeiro, professor visitante que coordena o grupo de trabalho responsável pela implantação do Instituto de Estudos Avançados da Unifesp, a missão desse novo órgão será a realização de pesquisas de ponta e a elaboração de propostas de políticas públicas

Daniel Patini

Renato Janine por Alex Reipert

Imagem: Alex Reipert

Promover pesquisas de ponta, adotando o diálogo interdisciplinar como princípio e método, é um dever das universidades de vanguarda no Brasil, as quais pertencem – em sua maioria – ao setor público, afirma Renato Janine Ribeiro, professor visitante da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Unifesp. Com esse objetivo estratégico, o ex-ministro da Educação e professor titular da Universidade de São Paulo (USP) coordena, desde o final de fevereiro, um grupo de trabalho responsável pela elaboração do projeto de implantação do Instituto de Estudos Avançados da Unifesp.

“Internacionalmente, os institutos de estudos avançados têm um foco voltado para a pesquisa. Mas, no Brasil, quando começaram a ser criados institutos com esse perfil, houve a preocupação de que também se dedicassem à formulação de políticas públicas. A boa notícia é que essa preocupação já está impregnada no espírito da Unifesp, em seus cursos e programas de pós-graduação. Assim, a prioridade do futuro IEA deverá ser a evolução na pesquisa dos assuntos novos e mais relevantes, bem como a discussão sobre o modo como o desenvolvimento científico impacta as formas de vida e de relacionamento humano. Nada é poupado pela velocidade das mudanças que ocorrem em nosso tempo”, afirma Ribeiro. 

Confira, na entrevista a seguir, as principais propostas defendidas pelo docente.

Entreteses - Como o senhor avalia seu trabalho na Unifesp?

Renato Janine Ribeiro - Fiquei muito contente com a proposta de trabalhar como professor convidado da Unifesp, que é uma das melhores universidades brasileiras, e estimulado pela possibilidade de auxiliar a instituição a progredir nas direções que ela escolher. Já fui diretor de Avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), entre 2004 e 2008, e conheço bem o sistema de pós-graduação. Minha equipe, naquele período, montou grande parte dos critérios ainda utilizados na avaliação. Com isso, foi possível compreender muitas questões sobre os progra-mas de mestrado e doutorado, que é uma área na qual a Unifesp é particularmente forte. Ao mesmo tempo, ela tem-se expandido e criado cursos novos.

 

E. Qual a importância de um instituto de estudos avançados para uma universidade?

R.J.R. Um instituto de estudos avançados é um ponto importante em uma instituição de pesquisa. Pode-se observar que as 20 melhores universidades brasileiras são as que se destacam em pesquisa, e a Unifesp está entre elas. É muito importante, quando se tem um foco em pesquisa, identificar estudos de ponta, dentro da universidade e fora dela. Então, fazer uma prospecção das possibilidades da universidade em relação às pesquisas de ponta é algo essencial. Para isso, será criado o instituto, com a minha colaboração.

 

Renato Janine por Alex Reipert

Imagem: Alex Reipert

E. Entre os objetivos estabelecidos por esse tipo de instituto, quais podemos destacar? 

R.J.R. Internacionalmente, os institutos de estudos avançados têm um foco voltado para a pesquisa. Mas, no Brasil, quando começaram a ser criados institutos com esse perfil, houve a preocupação de que também se dedicassem à formulação de políticas públicas. A boa notícia é que essa preocupação já está impregnada no espírito da Unifesp, em seus cursos e programas de pós-graduação. Assim, a prioridade do futuro IEA deverá ser a evolução na pesquisa dos assuntos novos e mais relevantes. 

Não há uma receita pronta para isso. Os pesquisadores mais destacados precisam ser consultados para a indicação dos novos horizontes de investigação científica. Com a ajuda deles, vamos elaborar um projeto colaborativo que venha da própria Unifesp, com base nas decisões adotadas em reuniões que são realizadas. 

Além disso, temos de discutir de que modo o desenvolvimento científico impacta as formas de vida e de relacionamento humano. Nada é poupado pela velocidade das mudanças que ocorrem em nosso tempo. Uma novidade é que, cada vez mais, a ciência e a pesquisa de ponta mudam a vida, numa escala nunca antes vista e que só deverá crescer. 

 

E. O instituto tem como foco a interdisciplinaridade?

R.J.R. Há uma grande tendência de delimitar cada vez mais o objeto de pesquisa, exigindo maior especialização dos pesquisadores, o que também é algo bom, embora torne as pessoas muito fechadas em seu campo de atuação. Às vezes, a injeção de conhecimento de uma área em outra pode representar uma revolução científica. O grande exemplo histórico é o da revolução que a geometria, no começo da Modernidade, efetuou em inúmeras ciências. Nos últimos anos, houve um aumento na qualificação das especializações, mas perdeu-se o diálogo interdisciplinar. E esse diálogo não trata apenas da troca de ideias secundárias; é, muitas vezes, a tentativa de ver como o paradigma de uma área pode ajudar outra, sem que haja a supremacia de uma delas. Se um instituto de estudos avançados tem a vocação interdisciplinar, tal condição poderá ser muito enriquecedora. Na verdade, o que tenho notado nas reuniões preliminares é a vontade de trocar ideias: o instituto deve estimular esse desejo, fornecendo meios e, sobretudo, reunindo pesquisadores de diferentes áreas em torno de assuntos de interesse comum e também incomum.

 

E. Que outros projetos o senhor pretende desenvolver na Unifesp?

R.J.R. No segundo semestre deste ano, vou oferecer um curso de pós-graduação sobre utopia e redução de danos. A utopia hoje é vista como sinônimo de projeto inviável, mas a abolição da escravatura, a igualdade de gêneros e o voto universal, por exemplo, foram fruto de utopias que funcionaram. Por outro lado, há uma linha diversa, que é a redução de danos. Parte-se do princípio de que a sociedade tem muitos fatores de infelicidade e injustiça, sendo impossível remover todos. E tentar uma solução radical e utópica, pode piorar a situação. Mas é possível reduzir os danos e ser mais efetivo nisso, aceitando que a sociedade nunca será totalmente feliz e justa. O grande exemplo, hoje, de utopia nefasta é o da guerra às drogas. 

Essas são duas grandes linhas filosóficas, a utopia e a redução de danos, mas o que me interessa, no caso, é que são também duas grandes linhas de políticas públicas: pode-se decidir quando convém uma política utópica e quando convém uma política de redução de danos. O que pretendo com o curso é que as pessoas que formulam as políticas públicas conheçam bem essas duas ferramentas e saibam quando aplicar uma ou outra. Já no próximo ano, quero montar um curso sobre a apropriação social do conhecimento, também na pós-graduação, que não será necessariamente ministrado por mim. Por meio desse curso, quero que os estudantes tenham uma visão muito clara de quem se beneficia com os avanços tecnológicos.

 

E. Como o senhor avalia o ensino superior brasileiro e a qualidade da educação a distância?

R.J.R. Houve um grande aumento no número de estudantes do ensino superior brasileiro, durante os governos petistas, graças a iniciativas como o programa de reestruturação e expansão das universidades federais (conhecido pela sigla Reuni), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e a educação a distância. Todos esses fatores precisam ser melhorados, mas vou-me deter no ensino a distância. Entendo que curso a distância no plano universitário não deve ser bom, não deve ser médio... deve ser excelente. Para isso, seria necessário que houvesse dois ou três cursos com a mesma denominação em todo o conjunto das universidades federais. Teríamos um curso com professores mais competentes. E o curso a distância não apresenta problema em relação ao número de alunos ou à localização geográfica. O ideal seria constituir uma rede de universidades que contasse com professores renomados. Assim, o curso a distância poderia suprir as deficiências de um curso presencial e atingir um público mais amplo do que temos hoje. Outro ponto é que ainda há uma grande demanda por títulos no Brasil. Muitos entram em universidades privadas que cobram mensalidades baratas e que, em troca, fornecem um ensino ruim. Vale dizer que, enquanto a avaliação da Capes fecha programas de mestrado e doutorado com baixo conceito, a avaliação do MEC não tem esse poder. Fechar um curso de graduação de má qualidade requer anos. Então, embora seja necessário, é difícil garantir a qualidade do ensino superior, sobretudo particular.

Uma breve biografia

Renato Janine Ribeiro foi ministro da Educação, entre abril e outubro de 2015. É professor titular de Ética e Filosofia Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), desde 1994, tornando-se, em 2016, professor honorário do Instituto de Estudos Avançados da mesma instituição universitária. 

Foi membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre 1993 e 1997, e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entre 1997 e 1999. Durante sua atuação como diretor de Avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), entre 2004 e 2008, dirigiu avaliações trienais de mais de 2.500 cursos de mestrado e doutorado no Brasil. 

Atualmente, o ex-ministro preside o Conselho de Ética da USP e a Comissão de Ética do Centro de Inovação para a Educação Brasileira (Cieb), além de ser membro do Conselho Superior de Estudos Avançados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). No setor de arte e cultura, integra o Conselho Consultivo do Instituto Inhotim, em Minas Gerais, considerado o maior centro de arte ao ar livre da América Latina, cujo acervo de obras contemporâneas sobressai como um dos mais importantes do país. 

É autor de 93 capítulos de obras coletivas e de 12 obras individuais. Entre estas figuram: A marca do Leviatã (1978), A última razão dos reis (1993), Ao leitor sem medo (1984), A etiqueta no Antigo Regime (1983), A sociedade contra o social (2000) – que conquistou o Prêmio Jabuti em 2001, na categoria de Ensaio e Biografia – e A universidade e a vida atual (2003). Mais recentemente, produziu A boa política (2017) e A pátria educadora em colapso (2018).

Foi condecorado com a Ordem Nacional do Mérito Científico (1997), a Ordem de Rio Branco (2009), a Ordem do Mérito Naval (2015) e a Grande Medalha da Inconfidência (2018).

Publicado em Edição 10
Quinta, 21 Dezembro 2017 15:00

Ciência em colapso

Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), membro da Academia Mundial de Ciências e da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, analisa os impactos da crise orçamentária na ciência brasileira

Lu Sudré

Luiz Davidovich

(imagem: Divulgação / ABC)

Laboratórios fechados, pesquisas paralisadas, bolsas em atraso e cientistas desestimulados: 2017 carrega o título de pior orçamento da ciência nos últimos 12 anos. Dos R$ 5,8 bilhões previstos para o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), apenas R$ 2,5 bilhões foram liberados para custeio e investimento na área. O corte do orçamento ameaça o protagonismo internacional do país e as conquistas já alcançadas pela ciência brasileira. É o que alerta Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciência (ABC), doutor em física pela Universidade de Rochester (EUA). Enquanto países da União Europeia, por exemplo, estimam aumentar seu investimento em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) para 3% do seu Produto Interno Bruto (PIB) até 2020, o Brasil caminha na contramão. Em 2017, foram investidos apenas 1% do PIB e as estimativas para 2018 não são animadoras. A meta de investir 2% do PIB em P&D até 2019, estabelecida pelo documento Estratégia Nacional de Ciência e Tecnologia, lançado ano passado pelo governo federal, parece cada vez mais distante. 

Para Davidovich, é preciso corrigir o rumo das prioridades governamentais com urgência, para que o atraso não se torne irreversível. O físico, membro da Academia Mundial de Ciências (TWAS) e da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, recebeu diversos prêmios, entre eles a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (2000) e o Prêmio TWAS de Física em 2001. Em 2016, Davidovich deu início ao Projeto Ciência para o Brasil, com a finalidade de elaborar propostas para o fortalecimento de setores estratégicos para o desenvolvimento do país.

Entreteses - Qual a importância da ciência no desenvolvimento do país?

Luiz Davidovich - Vivemos em uma sociedade do conhecimento, na qual o protagonismo internacional e o bem-estar da população dependem da capacidade de inovação baseada no avanço científico. Basta ver que a expectativa de vida dos brasileiros aumentou de cerca de 34 anos, em 1900, para 75 anos, em 2015. A ciência nacional teve um papel fundamental nesse desenvolvimento, por meio da descoberta e da implementação de novas tecnologias para saneamento, vacinas, técnicas terapêuticas. Um exemplo recente foi a resposta imediata da ciência brasileira à epidemia de zika, elucidando sua relação com a microcefalia. Isso foi possível graças ao apoio recebido no passado, de agências como CNPq, Capes, Finep e as fundações estaduais de amparo à pesquisa (FAPs). 

Mas o papel fundamental da ciência no desenvolvimento econômico e social do Brasil tem se revelado em muitas outras áreas. A descoberta de um processo de fixação de nitrogênio no solo, por meio do uso de bactérias, a partir das pesquisas realizadas por Johanna Döbereiner, em seu laboratório na UFRJ, não apenas multiplicou por quatro a produtividade da soja, mas representa para o país uma economia de R$ 15 bilhões por ano, que seriam gastos na importação de fertilizantes nitrogenados. O desenvolvimento da tecnologia aeronáutica incorporou aviões como item importante da pauta de exportação. A cooperação entre a Petrobrás e grupos de pesquisa em diversas instituições conquistou para essa empresa prêmios internacionais por sua tecnologia de extração de petróleo em águas profundas. O pré-sal, tido como uma aventura arriscada há poucos anos, produz atualmente quase 50% do petróleo brasileiro. 

Carros movidos a álcool foram criados pela ciência brasileira. O Brasil enriquece urânio no Centro Tecnológico da Marinha em Iperó – graças à ciência desenvolvida no país. Empresas como a Embraco e a WEG – respectivamente, entre as maiores fabricantes de compressores e de equipamentos elétricos do mundo – conquistaram seu protagonismo internacional em estreita colaboração com grupos de pesquisa nacionais. Também é importante o papel das ciências sociais ao desvendar a organização, a cultura, os hábitos dos mais diversos setores da sociedade brasileira e analisar os efeitos de políticas sociais.

O papel da C&T torna-se especialmente importante em épocas de crise econômica. O investimento nessas áreas promove um caminho para sair da crise de forma sustentável. Por isso mesmo, a União Europeia planeja alcançar, em 2020, 3% do PIB investido em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e a China 2,5% do PIB. Os Estados Unidos investem 2,7%, Coreia do Sul e Israel mais que 4%. Em 2008, no auge da crise, o presidente da China anunciou que, apesar da redução da taxa de crescimento, o investimento em pesquisa básica aumentaria em 26%. Hoje, estão à frente dos Estados Unidos em tecnologias sofisticadas, como a comunicação quântica.

 

Luiz Davidovich

(imagem: Divulgação / ABC)

E. O Brasil passa pelo pior orçamento para C&T dos últimos 12 anos. Qual análise faz dessa conjuntura?

L.D. O orçamento de custeio e capital (isto é, os recursos para pesquisa, não incluindo salários e gastos administrativos) do Ministério de Ciência e Tecnologia, em 2010, corrigidos pela inflação até este ano, foi de R$ 10 bilhões. O orçamento de 2017, do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, é de R$ 3,2 bilhões, mas R$ 700 milhões vão para o setor de comunicações. Temos, assim, cerca de 25% do orçamento de 2010, situação agravada pelo colapso de diversas FAPs. Isso explica a grave crise atual; o CNPq não consegue pagar as bolsas, a Finep tem recursos extremamente reduzidos para inovação tecnológica e projetos de infraestrutura de instituições de ensino e pesquisa. Investimentos estão zerados em diversas FAPs, cientistas estão deixando o país, laboratórios estão parando por falta de recursos. A crise nos estados afeta universidades importantes, como a UERJ. 

A partir de 2014, cortes sucessivos levaram a essa crise. O maior deles, no entanto, ocorreu em 2017, um corte de 44% nos R$5,8 bilhões previstos para este ano, que ameaça o desenvolvimento científico e tecnológico do país e reduz o investimento em P&D para algo próximo de 1% do PIB. Esse percentual de corte atingiu todos os ministérios, exceto os de Educação e Saúde, que estão protegidos pela Constituição. Ao realizar um corte linear, o governo está de fato confessando sua incompetência em definir prioridades para o Brasil.

 

E. A fusão que deu origem ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações prejudicou a ciência e a pesquisa? 

L.D. A fusão foi apresentada pelo governo como uma vantagem para a área de C&T, pois a força do setor de comunicações ajudaria a trazer mais recursos para o ministério. A previsão não se confirmou. A verba para a ciência diminuiu. Além disso, a complexidade do novo ministério levou a uma reforma que afastou órgãos como CNPq e CNEN, reduzidos a seções dentro de uma estrutura hierárquica de secretarias e diretorias. Tudo indica, portanto, que houve uma inversão de prioridades.

 

E. Quais as consequências diretas desse desmonte?

L.D. Estamos perdendo terreno no cenário internacional. Vários laboratórios estão na iminência de fechar. O pior efeito, a meu ver, está no desestímulo dos jovens, os cientistas de amanhã.
Há poucos anos, o Brasil destacava-se na imprensa internacional como um país que estava resolvendo seus problemas sociais e que aumentava seu protagonismo, com sucessos científicos e tecnológicos reconhecidos mundialmente. Esse prestígio esfumou-se. É preciso corrigir o rumo, de modo a impedir que esse atraso seja irreversível.

 

E. Há alguma perspectiva para reverter a situação?

L.D. Entre 2003 e 2014, o Brasil passou de 1,39% a 2,46% da produção científica mundial, o número de doutores formados por ano mais que dobrou, de 7.710 para 16.729. O Brasil ocupa o 13º lugar em número de publicações, nos rankings internacionais. Pesquisadores brasileiros têm recebido reconhecimento internacional, destacando-se a Medalha Fields, o prêmio mais importante da matemática, outorgada a Artur Ávila, em 2014. Grandes projetos internacionais, nas áreas de partículas, Astronomia e clima, contam com a colaboração de cientistas brasileiros. Há, no entanto, muito a avançar. O Brasil ocupa um lugar modesto nos rankings de inovação: passou da 47ª posição, em 2011, para a 69ª, em 2017. Entre as economias da América Latina e Caribe, o Brasil aparece em sétimo lugar, atrás de Chile (46º), Costa Rica (53º), México (58º), Panamá (63º), Colômbia (65º) e Uruguai (67º). No Brasil, a participação de empresas no investimento em P&D é menor que 50%, incluídas as estatais, como a Petrobrás, enquanto em países como a Coreia do Sul e a China esse percentual aproxima-se de 80%. As universidades brasileiras têm, também, presença modesta em rankings internacionais.

É necessário aumentar continuamente a qualidade da produção científica, reestruturar as universidades de modo a privilegiar a criatividade e o enfrentamento das grandes questões científicas, envolver a comunidade científica em projetos mobilizadores que focalizem as vantagens competitivas do país, como a inovação em Biotecnologia baseada na rica biodiversidade nacional – estima-se que apenas 5% das espécies são conhecidas. Esse é um rico tesouro, que corresponde a 20% da biodiversidade mundial. Esse e outros projetos mobilizadores, como o domínio da tecnologia para o lançamento e a confecção de satélites, o incentivo a energias alternativas, o desenvolvimento de novas tecnologias para a agropecuária e inovações na área de saúde. Todos esses projetos tornam-se inviáveis com um investimento em P&D da ordem de 1% do PIB. 

É esse caminho que está agora ameaçado.

 

E. Muito se fala do modelo estadunidense de investimento para a área. Ele é adequado ao Brasil? 

L.D. Podemos tirar algumas lições do modelo estadunidense. Por exemplo, as grandes empresas encaram positivamente o financiamento, pelo governo, de pesquisa básica em universidades e institutos de pesquisa. A razão desse apoio é clara: as empresas preferem desenvolver pesquisa aplicada, com potencial de ganhos a curto prazo, usando para isso os resultados obtidos pela comunidade acadêmica. É uma divisão de trabalho interessante para essas empresas. 

A contribuição direta de empresas para as universidades estadunidenses é pequena: de longe a maior contribuição vem do governo. Mesmo no Massachusetts Institute of Technology (MIT), a pesquisa patrocinada diretamente pela indústria totalizou 19% de todos os recursos para a pesquisa, em 2016. Por outro lado, a contribuição de ex-alunos para instituições de ensino superior totalizou 10,85 bilhões de dólares em 2015. Como se vê, é um modelo que, no presente momento, é difícil de imitar. Nos Estados Unidos, assim como na Europa, vigora há muito tempo uma Lei Rouanet para a ciência: contribuições a instituições de ciência e tecnologia podem ser deduzidas do imposto de renda.

 

E. O Ciência Sem Fronteiras ganhou muito destaque, mas foi encerrado abruptamente. Quais as consequências para o Brasil?

L.D. O Ciência Sem Fronteiras pecou pelo excesso. Apesar dos exemplos de sucesso, envolvendo estudantes em instituições internacionais de ponta, um grande número de bolsistas foi enviado para instituições que não se destacam internacionalmente e que cobram taxas altíssimas de matrícula. Por outro lado, é penoso ver os estudantes retornarem para um país que enfrenta uma crise grave, limitando a possibilidade desses bolsistas contribuírem para o país. Mas a crise afeta a juventude nacional. É a qualidade do emprego que está em causa.

Professor da Unifesp é empossado na Academia Brasileira de Ciências

Em março, Luiz Henrique Soares Gonçalves de Lima, professor e orientador no Programa de Pós-Graduação em Oftalmologia e Ciências Visuais da EPM/Unifesp, tomou posse como membro afiliado da regional São Paulo da Academia Brasileira de Ciências (ABC), para o período 2016-2020.

Lima foi selecionado para compor uma lista de jovens pesquisadores da ABC por sua atuação em pesquisas sobre degeneração macular e novas formas de liberação intraocular de fármacos.

Os integrantes da lista devem ter menos de 40 anos, trabalhos de relevância científica e serem radicados nas regionais Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. As indicações são feitas por membros titulares e levadas à votação por uma comissão de seleção.

Publicado em Edição 09

Associações formadas por universitários complementam o ensino da sala de aula por meio da prática profissional e do desenvolvimento de competências conectadas às demandas do mercado

Valquíria Carnaúba

Vários jovens estão em circulo em uma sala, segurando uma linha vermelha que forma uma rede

Evento de integração da Epeq Jr. 2014, realizado no auditório da Unidade José de Alencar (Campus Diadema)

É conhecido o significado mais comum para o termo “ecossistema”. Trata-se de uma unidade natural constituída de parte viva (plantas, animais e microrganismos) e de parte não viva (água, gases atmosféricos, sais minerais e radiação solar), que interagem entre si, formando um sistema estável. Paulo Lemos, doutor em Empreendedorismo Tecnológico e Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), transfere o modelo para o ambiente acadêmico, considerando-o como mais adequado para as universidades de pesquisa brasileiras. 

Para Lemos, o conceito de ecossistema sintetiza a crescente integração das atividades de inovação e empreendedorismo à realidade acadêmica e organizacional de universidades no mundo todo. Sintoma dessa tendência é o surgimento cada vez maior de organizações como empresas juniores (EJs) – associações civis sem fins lucrativos, formadas e geridas por estudantes de curso superior.

Segundo dados do Censo e Identidade da Confederação Brasileira de Empresas Juniores (Brasil Júnior), nosso país tornou-se líder mundial no segmento de EJs, ultrapassando a quantidade de negócios do gênero desenvolvidos dentro de universidades em toda a Europa. Hoje, há mais de 11 mil jovens profissionais distribuídos por cerca de 280 universidades brasileiras, compondo 1.200 dessas entidades. É possível que esse número se expanda ainda mais com a sanção da Lei Federal nº 13.267/2016, cuja matéria prevê a normatização das EJs no país.

Responsáveis pela concentração de alunos interessados em desenvolver competências como empreendedorismo e liderança, as EJs funcionam como verdadeiros laboratórios onde os universitários podem galgar uma carreira e experimentar, durante o período de graduação, cargos que vão de trainee a presidente. Uma experiência, segundo o professor da Unicamp, que pode ser convertida em oportunidade na hora de ingressar na iniciativa privada, no setor público ou em instituições sem fins lucrativos.

Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), já existem oito dessas organizações, pulverizadas entre os diferentes campi e compostas por estudantes de diversos cursos. São elas: Empresa Paulista de Engenharia Química Júnior (Epeq Jr.), Pharminder Jr. Consultoria em Projetos Farmacêuticos, Principia Jr., BUD Jr. e Sustentare Jr., estabelecidas no Campus Diadema; Empresa de Ciência e Tecnologia Multidisciplinar Júnior (ECTM Jr.), no Campus São José dos Campos; Instituto do Mar Júnior (IMar Jr.), no Campus Baixada Santista; e Eppen Jr. Consultoria, no Campus Osasco.

Em entrevista à Entreteses, Lemos aborda pontos como ensino, empreendedorismo e inovação, passando pelos possíveis rumos das EJs nas instituições federais de nível superior e pelas políticas de inovação nas universidades públicas – a exemplo da Unifesp.

Retrato de Paulo Lemos

Segundo Lemos, a empresa júnior é um espaço que propicia ao estudante a expressão e o desenvolvimento de competências que normalmente não encontram espaço nas salas de aula, ao longo da formação convencional

Entreteses - Qual a importância das empresas juniores (EJs) para a universidade pública e para o conhecimento?

Paulo Lemos - As EJs consistem em uma oportunidade de aprendizado complementar ao da sala de aula. Para compreender essa importância, cito o campo do empreendedorismo e da inovação. Um dos papéis exercidos pelas EJs consiste em funcionar como canal de expressão para competências como liderança, comunicação, relacionamento e capacidade gerencial. Nessas organizações, os estudantes podem fazer aflorar seus pontos fortes e envolver-se em práticas de gestão e empreendedorismo. Nelas, muitas vezes, é preciso simular situações de empresas reais, como a liderança de grupos e o desenvolvimento de uma atividade ou projeto. 

 

E. A empresa júnior costuma formar-se em torno de determinadas áreas do conhecimento?

P.L. O surgimento das EJs em torno de áreas do conhecimento depende muito da configuração da própria universidade ou instituição de ensino superior onde elas estão sendo implementadas. Um exemplo: uma universidade com forte atuação nas áreas de Administração de Empresas, Economia ou desenvolvimento de negócios, tanto em termos de graduação, como de pós-graduação, é uma situação muito diferente da de uma universidade ou instituição onde não há essa oferta de cursos. Se sou aluno de Biologia e estudo em uma universidade onde tenho acesso a cursos de Economia ou Administração e posso fazer cursos formais para complementar minha formação em Biologia, estarei em uma situação muito diferente de outra em que monto ou participo de uma EJ e não teria aquela alternativa. Cada organização tem a sua especificidade e sua necessidade. Por outro lado, é importante vislumbrar inovação onde não havia esse horizonte. Vamos tomar um exemplo mais clássico: uma EJ que surge a partir da iniciativa de estudantes de um curso de Artes. Teoricamente, o setor de artes e o lado mais comercial seriam coisas incompatíveis, mas não é essa a realidade. Até em um campus onde o surgimento de EJs seria inusitado, você pode presenciar EJs que trabalham com a parte cultural, artística e social, e até oferecem um espaço onde o artista é incentivado a gerenciar a própria carreira como empreendedor. É o espaço onde você pode expressar e buscar competências que não se encontram na sala de aula durante a formação convencional. Na área de Ciências Sociais, fazer toda a parte de levantamento de dados é uma competência que provavelmente será desenvolvida plenamente instalando-se uma empresa para abrir esse tipo de mercado; e uma EJ pode ser o local onde um aluno de Ciências Sociais irá aprender a gerenciar, projetar atividades, gerir projetos e adquirir outros conhecimentos.

 

E. Existe uma tendência de as empresas e instituições, ao absorverem os profissionais recém-formados, exigirem cada vez mais competências como capacidade empreendedora, liderança e autonomia? 

P.L. Há uma tendência – não somente no mercado de trabalho, mas também no âmbito social, de forma geral – de exigir que as pessoas sejam cada vez mais empreendedoras e que tenham a autonomia como uma característica empreendedora. Isso porque hoje, mesmo na mais antimercado das organizações, uma pessoa será exigida em sua capacidade empreendedora, envolvendo características como agilidade, autonomia e liderança. É uma tendência geral. A EJ, como um espaço onde o aluno desenvolve determinadas atividades, irá realmente complementar essas exigências. 

imagem de um auditório, pessoas sentada escutando e Paulo Lemos à frente proferindo palestra

O docente Paulo Lemos, da Unicamp, durante o evento Universidade Empreendedora e o Papel das EJs, no auditório térreo da Reitoria (2016)

E. As universidades públicas, em sua opinião, estão preenchendo essa condição, necessária ao profissional recém-formado?

P.L. Antes de abordar essa questão, sempre reforço a diferença entre instituição de ensino superior e universidade, pois são dois tipos de organização diferentes. A primeira tem como foco apenas o ensino; já a segunda agrega atividades de pesquisa, e isso deve ser considerado quando falamos das chances e oportunidades das EJs. A princípio, o papel da universidade depende da grade de cursos e de sua estrutura. Posteriormente, é necessário fazer a seguinte reflexão: qual é o projeto que a universidade ou a instituição de ensino superior tem para essas organizações denominadas EJs? Definições sobre a forma como essas EJs devem funcionar, dividir o trabalho e alinhar-se a atividades acadêmicas mais convencionais, dependem de projeto. Isso tudo é um passo enorme que exige a estruturação de um projeto específico para o desenvolvimento desejado, instalação, manutenção e a própria vida das EJs. 

 

E. Qual a infraestrutura que uma universidade deve oferecer para o bom funcionamento dessas EJs?

P.L. Podemos pensar em dois níveis: o físico e o conceitual. O primeiro trata dos recursos físicos mais básicos que devem ser fornecidos pela universidade para a operacionalização das EJs. É importante que estas disponham de uma infraestrutura que permita a operação diária e a definição de identidade e endereço. Com ela, os próprios alunos integrantes das EJs podem alavancar mais recursos. Por exemplo, se eles precisarem de itens como computadores e móveis, vão ter autonomia e capacidade de adquiri-los. Já quando falamos de infraestrutura conceitual devemos pensar em ecossistema: a infraestrutura como oferta de apoio e recursos propriamente dita. O conceito tem sido bastante trabalhado no contexto atual de gestão das organizações e consiste no reconhecimento da EJ, bem como na divulgação das atividades e em sua conexão com outras organizações. Se o integrante de uma EJ precisa do contato com outra universidade, onde pretende aprender uma atividade específica e fundamental para administrá-la, como a universidade de origem vai incentivar e mediar esse contato? Esse suporte implica a valorização da EJ e o estímulo ao seu funcionamento. 

 

foto de Paulo Lemos, ele está em pá e segura um livro nas mãos

Paulo Lemos

E. De que maneira a nova lei para regulamentação das EJs e organizações como o Movimento Empresa Júnior (MEJ) e Brasil Júnior podem ter contribuído para a expansão das EJs?

P.L. Podemos pensar sobre isso dentro de um contexto maior: a necessidade de haver um marco regulatório para a atuação das EJs, que pontue diretrizes jurídicas e legais, e também um marco regulatório de instituições. Movimentos como o MEJ, por exemplo, tiveram grande importância na concretização do marco regulatório, uma vez que se trata de organizações suprauniversitárias que dão diretrizes, espaço para maior troca de experiências e troca de aprendizado entre as EJs do Brasil todo, mesmo em nível estadual. Esse lado legal, portanto, já existia. Houve o reconhecimento de que as atividades desenvolvidas pelas EJs são relevantes, que demandam um arcabouço que coloca as regras para definir como elas devem funcionar. A outra questão referente ao marco é a possibilidade de atuação dos estudantes em patamar superior ao das próprias EJs. Se um estudante participa de uma EJ e depois atua no MEJ ou outra organização suprauniversitária, isso lhe proporcionará outras competências e exigirá mais quanto à coordenação de atividades e relacionamento. Os alunos mais interessados sabem que, ao se aprofundarem no mundo das EJs, sua atuação, que havia começado com elas, poderá estender-se a organizações maiores, implicando a aquisição de novas e importantes experiências para sua formação.

 

E. Críticos da criação de empresas juniores acreditam que essa iniciativa significa uma rendição da universidade pública ao mercado. Alegam que o empreendedorismo obedece a determinações como eficácia, produtividade e urgência, que são alheias às características inerentes à pesquisa científica de caráter público, porque esta não tem como horizonte a busca do lucro. Qual a sua opinião sobre isso?

P.L. Não existem contradições entre o conceito de EJ e o papel básico da universidade, mas sim possibilidades de conciliação. Qual é a principal missão da universidade, principalmente daquela que tem suas atividades voltadas ao ensino e à pesquisa? É a produção de conhecimento científico e tecnológico de excelência. Por isso, não podemos ser induzidos a crer que as atividades ligadas à inovação, ao empreendedorismo e à abertura da universidade atrapalhem essa missão principal, mas sim que a complementem. São atividades absolutamente conciliáveis, dependendo do propósito da universidade em gerenciá-las. Esse é um dos segredos das grandes universidades no mundo todo, as quais mantêm excelência na produção científica e tecnológica e, ao mesmo tempo, trabalham muito bem a inovação e o empreendedorismo. Como fazer isso? Apostando na prática, pois não existe uma fórmula mágica. Cada atividade deve ter seu próprio espaço.

 

E. Essa resistência pode estender-se à questão das patentes? Como a inovação pode sobreviver no Brasil, já que a inovação pode ser medida pela quantidade de patentes? 

P.L. Certamente. Se estou numa universidade que vai partir para uma política de incentivo à propriedade intelectual de sua produção científica e tecnológica, quais serão as diretrizes dessa política? Se isso estiver claro e definido, as resistências passam a ser mais bem equacionadas, pois desse modo é possível ter uma noção melhor do que fazer com a produção científica. Outro ponto é que o aprendizado, a compreensão do processo de patenteamento pelo pesquisador favorece imensamente a abrangência do conhecimento desse cientista. Não é em toda área que a produção científica tem potencial de patenteamento, mas nas áreas favorecidas pelas patentes é evidente que, tecnicamente, o trabalho do cientista será melhor quanto mais ele souber patentear, pois terá acesso a uma base de informações ampla, mais do que se acessasse bases bibliográficas. É preciso ter bem claro o propósito assumido pela universidade em relação à sua política de propriedade intelectual. Se estiver claro, a chance de haver resistência será muito menor. É uma questão antiga, recorrente e legítima, para a qual não existe resposta pronta. 

 

Sala com várias pessoas assistindo uma palestra

Membros da Principia Jr. ministrando palestra para os colaboradores da Basf, multinacional do ramo da Química, durante a Semana Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho (SIPAT), em São Bernardo do Campo

Grupo de jovens em pé

Parte dos membros da Principia Jr. durante dinâmica do processo seletivo de 2017

Vários jovens posando para a fotografia

Equipe da atual gestão da Epeq Jr. (2016/2017)

E. A existência das startups está de alguma forma relacionada à das EJs?

P.L. Não são apenas as EJs que hoje estão atuando nas universidades: há uma série de organizações que estão surgindo, de forma independente. Os próprios alunos sentem que podem e devem renovar o ambiente acadêmico e – a partir dessa concepção – estão encabeçando movimentos de empreendedorismo. Na Universidade de São Paulo (USP) e na Unicamp, por exemplo, alunos montaram centros e núcleos de empreendedorismo, organizações quase informais dentro da instituição para trabalhar com essa questão, que é uma realidade. Essa renovação está em andamento e é positiva para o ambiente acadêmico – em essência, um ambiente muito dinâmico. As startups, como um movimento global, estão estimulando esses novos tipos de organização.

Publicado em Edição 08

Pós-doutor pelas Universidades do Colorado e da Califórnia, ex-diretor do Laboratório Nacional de Nanotecnologia e professor titular aposentado do Instituto de Química da Unicamp, Fernando Galembeck falou em entrevista à Entreteses sobre o recém-aprovado Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, que pretende traçar um novo caminho para o desenvolvimento da pesquisa científica no Brasil

Da Redação
Com a colaboração de Gabriela Tornich

EntreTeses7 p09 Galembeck

Galembeck posa em frente ao Instituto de Química da Unicamp

Um avanço importante e necessário no percurso evolutivo da ciência no Brasil. É o que pensa Fernando Galembeck, ganhador dos prêmios Anísio Teixeira e Almirante Álvaro Alberto, sobre o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, consolidado pela Lei nº 13.243/2016, que foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em janeiro deste ano.

Segundo Galembeck, que atualmente é professor convidado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o novo marco contempla questões cruciais até então ausentes da legislação, pois permite – entre outros pontos – a dispensa de licitação na compra de produtos destinados à pesquisa e ao desenvolvimento de produtos; autoriza o uso compartilhado de instalações, laboratórios e equipamentos próprios às universidades públicas por empresas de direito privado, visando à obtenção de produtos e processos de inovação; e amplia de 120 para 416 horas anuais (8h semanais) o tempo que docentes em regime de dedicação exclusiva podem despender em atividades no setor privado.

Para Galembeck, a lei diminui os obstáculos jurídicos ao desenvolvimento da pesquisa: agora, as instituições científicas terão respaldo legal para assinar acordos com parceiros privados, podendo transferir a estes, mediante compensação – financeira ou não –, os direitos de propriedade intelectual sobre os resultados obtidos. O poder público (União, Estados e municípios), por sua vez, poderá fomentar a inovação e solucionar demandas tecnológicas específicas por meio da contratação direta (sem licitação) ou da participação minoritária no capital social de empresas que estejam capacitadas a criar e executar projetos de pesquisa.

Ao contrário do que alguns profissionais argumentam, a pesquisa – na visão do entrevistado – não ficará refém dos interesses privados, pois a lei determina contrapartidas que deverão ser assumidas pelas empresas que desenvolvam projetos em parceria com instituições públicas. Além disso, o lucro – conforme enfatiza – é fundamental à sustentação do sistema econômico vigente em nosso país.

Otimista, Galembeck pondera que o momento é de criar um modelo efetivo que alavanque o desenvolvimento tecnológico no país. Sua contribuição nessa área – ressalte-se – é notável, conforme atestam as inúmeras distinções honoríficas que recebeu ao longo de sua trajetória acadêmica e as titulações como membro da Academia Mundial de Ciências (The World Academy of Sciences – TWAS) e da Royal Society of Chemistry, sediadas respectivamente em Trieste (Itália) e em Londres. Parte de seus trabalhos mais recentes analisam as interações entre partículas coloidais e nanopartículas, as superfícies de polímeros, a formação e propriedades de nanocompósitos, as propriedades de sólidos não cristalinos, a eletrização de isolantes e a triboeletricidade. Esse pesquisador mantém vários projetos com empresas, voltados principalmente à criação e desenvolvimento de novos materiais e a processos de fabricação. Obteve o licenciamento de sete patentes, com base nas quais três produtos foram lançados no mercado.

Ocupou postos de direção na Unicamp, no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e em sociedades científicas. Participou da elaboração e implementação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), lançado em 1985, que modernizou a estrutura da pesquisa científica e tecnológica no Brasil e possibilitou a aproximação entre as instituições acadêmicas e o setor produtivo.

Galembeck sendo entrevistado no laboratório

Galembeck em um dos laboratórios do Instituto de Química da Unicamp

Entreteses - A criação do Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação representa um avanço para o desenvolvimento da pesquisa no Brasil?

Fernando Galembeck - Sim, um avanço importante e necessário. O problema da pesquisa no Brasil está longe de ser apenas a quantidade de recursos investida. Há outros problemas, que reputo serem mais graves, e um deles é o emaranhado legal que cria incertezas jurídicas e onera as atividades de pesquisa com burocracia e com impostos nada estratégicos. O novo marco legal trata exatamente dessas questões.

 

E. O senhor crê que o modelo atual, sem o marco legal, poderia ser melhorado caso o governo decidisse investir mais em pesquisa?

F.G. Não existe um "modelo atual". O que há é uma falta de modelos, justamente por causa da falta de bons programas e da existência de complicadores legais. O que temos é um somatório confuso de ações desconexas, que a nova Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia & Inovação está tentando corrigir. Mas ainda falta muito.

 

E. Muitos especialistas são contra o texto do marco legal. Eles enxergam de forma negativa o fato de as pesquisas serem direcionadas ao mercado, ao lucro. Acreditam que a pesquisa pública ficará submissa aos interesses privados. Qual a sua posição sobre isso?

F.G. Também há muitíssimos especialistas a favor. Na sociedade do conhecimento, em que almejamos viver, a principal fonte de bens materiais é o conhecimento. Para que tenhamos abundância de bens materiais que sejam suficientes, pelo menos para garantir a inclusão social, precisamos usar o conhecimento. As extintas União Soviética e Alemanha Oriental não conseguiram fazer isso e desapareceram. A China atual valoriza o lucro e o mercado e está-se tornando a principal potência econômica do mundo. Fidel Castro, em Cuba, estimulou empresários de algumas áreas, especialmente a de biotecnologia, a desenvolverem suas empresas, e uma empresa só se desenvolve se produzir lucro. Em 2016, lucro não pode ser visto apenas como a mais-valia arrancada dos trabalhadores por empresários gananciosos. Lucro é, principalmente, o resultado de inovação tecnológica que atenda às necessidades do mercado. Sem lucro, a atividade econômica não se sustenta; ele é essencial para a própria sustentabilidade das atividades humanas – qualquer que seja o regime político.

 

E. Como ficam as fundações de amparo à pesquisa tendo em vista a criação do marco?

F.G. As fundações de amparo à pesquisa formam um conjunto excessivamente diverso para que se façam grandes afirmações gerais. Haverá casos e casos, que reagirão de acordo com o maior ou menor compromisso dos respectivos governos estaduais com o crescimento dos seus Estados e sua maior ou menor competência em usar ciência e tecnologia para o desenvolvimento. Itens importantes do marco já são praticados nas universidades estaduais de São Paulo, há décadas. Abraham Sicsú, que é o presidente da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe), mostrou uma posição favorável ao marco, em um artigo publicado em Ciência e Cultura (volume 68, número 2, abril-junho de 2016), intitulado Avanços e Retrocessos no Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação: Mudanças Necessárias.

 

E. Existem indicadores que mostrem quanto da pesquisa das universidades é voltado ao desenvolvimento de tecnologias? O que eles revelam sobre o estágio de desenvolvimento científico no Brasil?

F.G. Há vários indicadores para avaliar a atividade de pesquisa no Brasil, mas não creio que haja um esforço de compô-los de forma a responder à sua pergunta. Portanto, respondo com base na minha vivência: só uma fração muito pequena da pesquisa nas universidades brasileiras contribui para o desenvolvimento de tecnologias. Uma evidência que sustenta essa afirmação é a pouca presença de grupos universitários nos projetos da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii).

 

E. O investimento das empresas no setor vai aumentar com o marco legal?

F.G. Eu, os autores do marco e muitas outras pessoas esperamos que sim. Infelizmente, o governo federal tem mostrado uma infinita capacidade de criar obstáculos às suas próprias iniciativas. Basta ver a pobreza dos dados relativos à Lei de Inovação (Lei nº 10.973/2004), apesar dos discursos grandiloquentes de que era uma "política de Estado". Nesse momento, os principais obstáculos são os vetos presidenciais a vários artigos do marco.

 

E. Hoje, no Brasil, as pesquisas e os pesquisadores estão concentrados nas universidades públicas, diferentemente do que acontece nos países desenvolvidos. O marco pode mudar esse cenário? Qual o impacto que o marco traz do ponto de vista dos pesquisadores?

F.G. O marco poderá propiciar um aumento importante na população de pesquisadores, nas indústrias e mesmo nas universidades. Eu aprecio muito o que se passa em qualquer país desenvolvido, onde professores universitários produzem ciência de alto nível, que é transformada, mediante a participação deles, em produtos colocados no mercado, gerando receitas, lucros que garantem a sustentabilidade das empresas, empregos bem remunerados em empresas viáveis etc. Isso permite até mesmo que os grupos de pesquisa nas próprias universidades se expandam, sem ter como única opção as receitas derivadas de impostos.

 

E. Podemos prever um aumento no número de patentes brasileiras? De que maneira isso aconteceria?

F.G. Isso é muito provável e necessário. Patentes não são sinônimo de inovação nem de tecnologia, mas são uma etapa importante no processo de desenvolvimento tecnológico e de inovação. O mais provável é que ocorra, em muitas universidades e empresas, o mesmo que ocorreu nos Estados Unidos, depois do Bayh-Dole Act, ou na Unicamp, depois de 1988, ou em algumas empresas brasileiras, depois da nova Lei de Patentes (Lei nº 9.279/96): as pessoas perceberam que depositar patentes, em vez de simplesmente publicar resultados ou optar pelo sigilo, aumenta muito o significado e alcance dos resultados obtidos pelos pesquisadores e engenheiros. Patente é um ativo que pode ser contabilizado e é uma ótima maneira de difundir resultados de pesquisas, universalmente e de graça, pela internet.

 

E. A lei também vai causar impacto na formação de capital humano preparado para atuar nas empresas?

F.G. Isso também é muito provável. Melhor ainda, teremos capital humano preparado para que este país se desenvolva, a renda per capita aumente, mais impostos sejam arrecadados para financiar a saúde e a educação públicas etc.

 

E. Em quanto tempo será possível sentir essas mudanças na prática? O marco pode tornar o Brasil mais competitivo no mercado internacional?

F.G. Neste momento, é necessário superar o desfiguramento do marco, causado por vetos presidenciais que tinham como única justificativa evitar um aumento nos problemas fiscais do país. Esses vetos são uma boa demonstração de como as sucessivas leis, mesmo as bem-intencionadas, tornam-se pouco efetivas. Eles mostram como governos são incapazes de implementar as políticas que eles mesmos criam, por causa de apuros circunstanciais. Se isso não for feito, não haverá mudanças substanciais. Se o marco for preservado, o Brasil será mais competitivo. Isso é o esperado, segundo o inciso VII do parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 10.973/2004.

Repito o que disseram Abraham Sicsú e Mariana Silveira, no artigo que citei ao tratar das fundações de amparo à pesquisa: "É consenso, na atualidade, que a inovação é fundamental para o desenvolvimento de um país. Claro, não deixamos de comemorar o avanço do marco legal. Mas o próximo passo agora é superar um certo clima de frustração que foi criado com os vetos que, no nosso entender, continuam a dificultar que um país, moderno e dinâmico, mas com baixa taxa de inovação, possa superar suas crises." Está ocorrendo uma forte mobilização nesse sentido. Espero que tenha sucesso.

Publicado em Edição 07

À frente do projeto Estudos Preparatórios para a Introdução da Vacina da Dengue no Brasil, o infectologista e professor na Unifesp Marcelo Nascimento Burattini explica o atual panorama da epidemia de zika no país

Ana Cristina Cocolo
Com colaboração de Valquíria Carnaúba

Fotografia do mosquito aedes aegypti

Entreteses - Como se deu a participação da Unifesp em estudos que definirão o esquema de vacinação contra a dengue?

Marcelo Burattini - Em 2009, propus ao Ministério da Saúde (MS) uma série de estudos para caracterizar o perfil epidemiológico do país e, assim, definir a campanha de vacinação mais adequada quando a vacina estivesse disponível. A proposta ficou em discussão nos comitês Técnico Assessor de Imunizações (CTAI) e Técnico Assessor de Controle do Programa Nacional de Controle da Dengue (CTA - PNCD) durante três anos. Em 2012, definiu-se por quatro estudos que, juntos, vão avaliar diversos aspectos da ocorrência da dengue no Brasil para que possamos definir quais populações, em quais localidades e o melhor esquema a ser adotado, baseado em evidência científica.

 

Retrato do pesquisador Marcelo Burattini

Marcelo Burattini, em frente à diretoria da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp)

E. Que estudos são esses? 

M.B. O primeiro estudo será uma revisão para levantar os casos de dengue que ocorreram no Brasil nos últimos 15 anos e fazer uma descrição clínicoepidemiológica (como se comporta, quais os sintomas, como se apresenta em diferentes regiões, qual a frequência de casos graves, quais as complicações, fatores de risco para hospitalização e óbito). Além dessa análise, está sendo realizado um inquérito nacional de soroprevalência, estratificado por idade. Ou seja, estamos em 63 municípios, cobrindo os estados do Brasil, com exceção do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, fazendo uma amostragem de 1.200 pessoas por município, com idades entre 1 e 20 anos. Os dados vão nos permitir calcular uma série de parâmetros epidemiológicos que são críticos para se definir a melhor política de vacinação. Temos mais dois estudos interligados que avaliam o tipo de resposta imunológica do nosso sistema de defesa ao vírus da dengue. Como acontece, quais são os antígenos principais envolvidos e outra questão, que é a dengue grave estar relacionada a uma hiperresposta inflamatória do sistema imune. Estamos tentando descobrir como funciona esse mecanismo.Por último, fechando a linha de pesquisa, com posse dessas informações e das características das vacinas disponíveis, que são providenciadas dentro dos ensaios clínicos de responsabilidade dos produtores, será elaborado um processo de tomada de decisão, baseado em lógica nebulosa, que vai considerar diferentes estratégias possíveis e escolher qual delas é mais adequada para o perfil epidemiológico de morbiletalidade da dengue no Brasil.

 

E. Por que Santa Catarina e Rio Grande do Sul foram excluídos da amostragem?

M.B. Por não apresentarem um perfil de Dengue endêmica. São estados muito frios. Se, em 2015, São Paulo registrou 650 mil casos, Santa Catarina apontou 1.200. Esse número não tem relevância em saúde pública. Escolhemos municípios com população entre 100 mil e 1 milhão de habitantes, que sejam polos regionais e que tenham tido, em ao menos três dos cinco anos analisados, ocorrência de dengue com incidência superior a 300 casos por 100 mil habitantes.

 

Histórico do mosquito Aedes aegypti e da dengue no Brasil

O mosquito Aedes aegypti tem origem africana e chegou ao país nos navios negreiros, reproduzindo-se nos depósitos de água dos barcos nas viagens da África para o Brasil

1865

Descrito o primeiro caso de dengue, em Recife (PE)

1872

Primeira epidemia no país, em Salvador, mata 2 mil pessoas

1903

Oswaldo Cruz implantou um programa de combate à febre amarela, também transmitida pelo mosquito

1916/ 1923

Há referências de epidemias de dengue em São Paulo e, em 1923, em Niterói (RJ), sem comprovação laboratorial

1955

O Aedes foi erradicado

1967

Relaxamento das medidas permitiu a reintrodução do vetor

1976

Falhas na vigilância epidemiológica e urbanização acelerada possibilitaram reinfestações no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro

1981

Nova epidemia de dengue atinge Boa Vista (RR), onde foram isolados os vírus DEN-1 e DEN-4. Esse episódio marca o ressurgimento da doença no país

1986

Epidemia de dengue DEN-1 no Rio de Janeiro e várias áreas do Sudeste

1990

Introdução da dengue DEN-2 no Rio de Janeiro. Primeiro surto de dengue hemorrágica

1998

Epidemia com mais de 500 mil casos. A região Nordeste foi a mais afetada

2000

O vírus DEN-3 foi isolado no Rio de Janeiro, levando à nova epidemia que ocorreu entre 2001 e 2003 e atingiu vários estados do Sul

Fontes: Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), Aedes aegypti: histórico do controle no Brasil (artigo de Ima Aparecida Braga e Denise Valle, publicado no periódico Epidemiologia e Serviços de Saúde)

E. Quais desses estudos já possuem dados fechados?

M.B. Já temos compilado a revisão das análises clínicas e epidemiológicas da ocorrência da dengue no Brasil até 2015, em uma análise de morbiletalidade que permitiu a adequada caracterização e dimensionamento dos problemas de saúde relacionados à dengue no Brasil. O inquérito nacional de soroprevalência está sendo realizado em 63 municípios indicados conjuntamente pela coordenação do estudo e pelo Programa Nacional de Controle da Dengue. Esse trabalho está 85% concluído. Temos aproximadamente 50 mil soros analisados dos 66 mil previstos. Já sabemos hoje que a hospitalização e a mortalidade por dengue em relação à idade se concentra em crianças menores de 9 anos, com pico entre 5 e 6 anos, e em adultos acima de 60. O agravamento da dengue, a hospitalização e óbito estão relacionados com a região geográfica. As regiões Norte e Nordeste apresentam um risco maior que as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Nós mostramos também que o risco de hospitalização e o óbito tem relação com o tipo da dengue. Os vírus 2 e 3 são os que oferecem maiores riscos de casos graves. Também identificamos que o intervalo de tempo entre o sintoma e o primeiro atendimento interfere na gravidade, hospitalização e óbito. Uma demora superior a três dias oferece um risco de 2 a 3 vezes maior; acima de 5 dias, até 6 vezes mais chances de hospitalização e morte. As gestantes também correm mais risco, particularmente a partir do terceiro trimestre. O resultado do terceiro estudo, que avaliará a resposta imune do organismo infectado pelo vírus da dengue, deverá ser finalizado no início do segundo semestre. No entanto, dados preliminares apontam que existe um componente de resposta imune celular que é muito importante na proteção à doença.

 

E. Quais são as perspectivas das vacinas que estão em desenvolvimento ou já em fase de testes?

M.B. Hoje temos seis vacinas. Cinco delas, bem adiantadas. Uma é da Sanofi Pasteur, licenciada para uso no Brasil, Nicarágua, México e mais alguns países. No Brasil, ela já tem registro na Anvisa, mas não tem o preço definido. Tem a vacina do Butantã, em conjunto com os National Institutes of Health (NIH) dos Estados Unidos, que começou o protocolo de fase três, no início de março, e a previsão é que esse estudo se estenda por mais três anos, no mínimo. As demais estão no final do protocolo de fase dois.

 

E. Qual o motivo da resistência do Ministério da Saúde em adotar a imunização com a vacina da Sanofi?

M.B. Tem uma série de características da vacina descritas e promovidas pelo laboratório fabricante que não batem com os perfis prioritários que temos no Brasil. É por isso que o Ministério da Saúde ainda está estudando a forma de usá-la no programa. Por exemplo, a vacina da Sanofi está licenciada para a população com idade entre 9 e 45 anos. Ela deixa fora os dois extremos (menores de 9 e maiores de 60 anos) em que a doença oferece maior risco e não deve ser usada em gestantes. Essa vacina tem uma eficácia fraca, entre 50% e 60%, e é mais fraca para o sorotipo 2 da dengue, que oferece maior risco da doença grave. No sudeste da Ásia, o estudo de fase 3 expandida da vacina da Sanofi levou a um maior risco de hospitalização entre as crianças vacinadas quando comparadas às que não receberam a vacina, entre 2 e 9 anos de idade. Existe um comitê técnico assessor misto do Programa Nacional de Imunizações e do Programa Nacional de Controle da Dengue que está avaliando todas essas questões e deve propor se, quando e como a vacina deverá ser incorporada no Programa Nacional de Imunizações. Promover abaixo-assinados para que o governo adote a vacinação imediatamente é atitude de quem não conhece o assunto, porque, caso seja usada sem critério, pode inclusive piorar a situação: se a população e os governos, uma vez disponível a vacina, se sentirem seguros e relaxarem no combate ao vetor, a situação vai piorar. Exemplo dessa preocupação é o fato da dengue não causar mais alarme na população e nos governos, apesar dos números crescentes de casos e óbitos nas epidemias anuais. Assim, o combate ao vetor não era uma prioridade nacional até aparecer o Zika. Além disso, estudos que simulam intenção, feitos com a população, mostram que haveria um relaxamento nas medidas de controle do vetor se fosse oferecida uma vacina eficaz. Portanto, ainda existem muitos aspectos que precisam ser melhor conhecidos.

 

E. Pesquisadores verificaram uma rápida mutação genética mediante a qual o Aedes aegypti consegue sobreviver a temperaturas mais amenas, além de apresentar tamanhos e formatos de asas variados. Essa evolução genética pode comprometer o sucesso da vacina?

M.B. Toda variação que permita ao mosquito se adaptar melhor ao ambiente aumenta o risco da doença, mas não necessariamente compromete a vacina. Se a vacina for muito boa, com uma eficácia acima de 90%, ela vai levar a uma boa proteção da população humana em qualquer cenário. Mas se a vacina for intermediária, com uma eficácia entre 50% e 80%, pode ser pior vacinar a população se houver um aumento da população do mosquito.

 

E. Qual será o impacto de epidemia, caso seja comprovada a possibilidade de transmissão do zika pelo Culex quinquefasciatus, o pernilongo comum? 

M.B. Esse é um cenário bastante preocupante, mas ainda não está confirmado. Há maior população de Culex no mundo do que a de Aedes e a área de Culex é muito maior também. O Aedes é encontrado principalmente no cinturão intertropical estendendo-se na faixa de climas subtropicais e temperados quentes. Na região temperada não tem essa espécie. O Culex está presente no mundo inteiro, até no Canadá. Nas cidades, a população do Culex pode ser de até 50 a 100 vezes mais abundante que a do Aedes, porque ele aproveita água suja e limpa para se reproduzir. Se o vírus se adaptar ao Culex e o ciclo humano culex/homem/culex se confirmar, a epidemia vai ganhar outra dimensão.

 

fisioterapeuta atendendo uma bebê

Em Recife, a fisioterapeuta Cynthia Ximenes atende bebês com microcefalia e orienta as mães sobre como fazer os exercícios em casa para melhorar o desenvolvimento das crianças

E. Há a suspeita de que os casos de microcefalia estejam associados ao zika vírus. O que se cogita é que, provavelmente, muitos casos registrados como dengue são, na verdade, zika ou chikungunya. Esses vírus possuem características morfológicas e de proliferação semelhantes ou apenas a forma de apresentarem os sintomas?

M.B. A única coisa em comum entre o chikungunya, o zika e a dengue é o vetor. O quadro clínico é parecido nos três casos, assim como nas parvoviroses e nas infecções por outros enterovírus. Mesmo a febre amarela apresenta um quadro muito parecido em 70% a 80% dos casos, em uma determinada fase da doença. As pessoas apresentam febre, mal-estar, dor no corpo, cefaleia e manchas vermelhas no corpo. A intensidade e frequência dos sintomas varia de uma infecção para a outra. Um artigo recente mostra que os vírus da dengue são geneticamente muito relacionados, mas apresentam uma capacidade de produzir anticorpos muito distinta. Mesmo assim, há reação cruzada de um sorotipo com outro. Quem foi exposto ao sorotipo 1 pode ter teste positivo para o sorotipo 2, 3 ou 4. Quem for exposto a qualquer sorotipo e ficar imune, pode pegar a doença por outro sorotipo, com uma probabilidade menor, ou, se pegar, tê-la em uma forma mais branda. Contudo, em uma minoria dos casos, a pessoa nessas condições pode apresentar uma forma mais severa da doença. Discutiu-se muito tempo isso referente à dengue e à febre amarela. Quem vacinou para febre amarela e pegar dengue, por causa dessa reação cruzada, vai sofrer esse fenômeno de amplificação da doença? Isso não foi demonstrado até hoje. Com relação ao zika, ainda não temos essa informação. Esse é um vírus que está em estudo ainda. Como ele se comporta, como ele atinge uma população, se a pessoa que teve zika fica protegida o resto da vida, se ela tem chance de ter novamente, se ela pode pegar a infecção e não desenvolver sintomas clínicos, se isso tem implicação na transmissão ao feto, por exemplo, quanto tempo deve-se evitar a gestação pós-infecção, são respostas que ainda temos que buscar.

 

E. Em nenhum país do mundo esse problema da microcefalia atingiu proporções epidêmicas como no Brasil. Por quê?

M.B. A explicação oferecida pelo grupo que acompanha os casos do Nordeste é a de que o número de nascimentos no Brasil é muito maior que nos outros países afetados; isso, associado à grande epidemia de zika no Nordeste, permitiu a concentração de casos em um período de tempo curto o suficiente para levantar a suspeita e permitiu o reconhecimento da ocorrência. Por outro lado, o Brasil, seguramente, não notificava, nem de perto, a totalidade dos casos de microcefalia existentes. Isso faz com que o número atual, de mais de 5 mil, pareça muito grande comparado com os 150 casos ao ano que o Brasil notificava até então, amplificando o alerta ao máximo. Os Estados Unidos, que têm um número de nascidos vivos parecido com o nosso, computam entre 15 a 20 mil casos ao ano. Há um grupo que faz um trabalho com má-formação congênita cardiológica no Nordeste que tem um banco de dados com mais de 100 mil partos. Eles publicaram, em fevereiro, uma análise retrospectiva de 16 mil fichas de neonatos, de 2012 para cá, na qual relatam 6% de microcefalia. Isso corresponde a quase 6 mil casos só na região. Não houve um aumento de casos nesse período, apontando que a incidência é estável. Provavelmente, temos uma realidade não percebida de 5 a 10 mil casos de microcefalia por ano, na forma leve, que deve ser só de cabeça pequena, sem nenhuma repercussão clínica, e temos uma fração de casos extremos, que são as microcefalias graves, com alterações morfológicas importantes, que é semelhante à prevalência mundial (0,02%, 2 casos em cada 10 mil partos). Se for isso mesmo, o zika poderia ter despertado o alerta, mas não geraria o pânico que está gerando. Não falaríamos em um aumento de 20 ou 30 vezes no número de casos, estaríamos falando em um aumento de 15% ou 20%, significante, mas com menor alarme, sem dúvida. Então, isso também precisa ser melhor esclarecido. Estamos conduzindo um estudo na EPM/Unifesp, junto ao Amparo Maternal, ao Hospital São Paulo e às maternidades dos hospitais afiliados da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), sobre qual é a ocorrência prévia de microcefalia, de acordo com os critérios adotados pelo Ministério da Saúde. Os resultados serão apresentados até o final do ano.

 

Agente saúde trabalhando em um local com acúmulo de água parada

Atuação de agente de saúde durante o Programa de Combate à Dengue, em Curitiba, para o Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti (LIRAa), segundo o portal do Sistema Único de Saúde
(portalsaude.saude.gov.br)

E. Há possibilidade de haver uma epidemia conjunta por esses três vírus?

M.B. Há uma possibilidade de haver uma epidemia, vamos dizer assim, provocada pela ocorrência dos três vírus em uma mesma localidade. Em uma cidade grande, sim, mas em bairros diferentes. Em Biologia existe um teorema comprovado que se chama Princípio da Competição Excludente. Se você tiver três vírus competindo no mesmo ambiente, com o mesmo vetor, só um deles vai predominar e vai deslocar os outros dois. Mas em uma cidade como São Paulo é totalmente possível que na Zona Norte, por exemplo, ocorra a infecção por chikungunya, na Oeste dengue e Sul, zika. Não existe, de modo epidemiologicamente relevante, a possibilidade de um mesmo vetor transmitir os três vírus simultaneamente. O que é muito raro, mas pode acontecer, é a pessoa ser picada por mosquitos diferentes, cada um com um tipo de vírus e desenvolver as três infecções.

 

E. Sempre se estima que uma vacina leve entre três e cinco anos para sua distribuição. No entanto, um grupo liderado pelo Canadá promete a vacina contra o zika, para uso emergencial, já para novembro deste ano. Como explicar isso?

M.B. Esses três a cinco anos é quando tudo dá certo. Eles vão fazer uma vacina de Engenharia Genética, uma vacina recombinante, em que se pega parte do segmento do genoma do vírus zika e o coloca em algum cavalo ou em um ambiente de vacina inativada, que normalmente são muito seguros. Para ter um protocolo para uso em emergência, é permitido pular a etapa dos testes de segurança e eficácia em humanos. Então é possível ter uma vacina que vai ser usada sem estar propriamente validada. Isso oferece um risco maior e só deveria ser pensado em situações críticas. Para o ebola, por exemplo, foi pensado nisso e mesmo assim, no surto recente dessa doença, não se conseguiu fazer uma vacina em tempo hábil para sustar a epidemia. Em relação ao zika o risco é muito menor. O risco maior do zika é a má-formação do concepto. Como aplicar a vacina em uma gestante sem saber qual a reação que pode causar? Essa é uma questão que terá que ser discutida depois que se souber as características dessa vacina, como sua imunogenicidade, que é a capacidade de gerar a defesa do organismo, e qual a reatogenicidade, que é a capacidade de provocar reações.

 

E. Como o poder público deveria enfrentar os mais de 5 mil casos de microcefalia registrados no Brasil, suspeitos de ligação com o zika? 

M.B. O poder público está estruturando ambulatórios especializados em neurologia infantil para acompanhamento dessas crianças. Ainda tem muita coisa para ser feita, como exames oftalmológicos, pois a frequência de lesão ocular é muito grande; tem que fazer exame otológico para verificar alterações na audição; tem que aguardar essas crianças atingirem idade pré-escolar para ver se tem retardo mental, epilepsia, transtornos de atenção e hiperatividade ou de fala. Todas essas alterações menores, menos impactantes, são frequentes em doenças que afetam o sistema nervoso.

 

E. Houve pouco investimento no combate à dengue por parte do poder público? O que ocorreu para que a epidemia chegasse ao patamar que chegou?

M.B. Não creio que houve problema de investimento, mas sim de organização de resposta à saúde pública. Aí temos alguns mandamentos constitucionais, uma estruturação do sistema público brasileiro, com papéis definidos com relação aos governos federal, estadual e municipal. Existem conflitos na esfera administrativa das atribuições de responsabilidade. O Brasil tem um governo federal, 27 instâncias estaduais e cerca de 5.500 governos municipais. Quem tem que executar as ações em saúde pública é a instância municipal. Essas ações são planejadas e propostas centralmente. Depois são discutidas nas comissões tripartites, com a participação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), para ser executado na esfera municipal, sob supervisão estadual, que se reporta ao governo federal. Obviamente, a adesão é diferente nos governos municipais. Há diferentes performances nas políticas públicas de combate à dengue e ao Aedes aegypti. Tem prefeito que atua de forma eficaz, outros são relapsos. Tem questões políticas inclusive. Esse é o primeiro fator, mas existe um outro pior em relação ao controle do mosquito: o controle do vetor não é feito como deveria pela população. A maior parte dos casos de procriação do mosquito está dentro das próprias residências. No domicílio e no peridomicílio imediato. E as pessoas estão alertas, sabem disso. O governo faz campanhas de como combater desde 1982.

 

E. Qual a saída para sensibilizar as pessoas sobre os riscos das epidemias desses vírus? 

M.B. Nós estamos acostumados a colocar a responsabilidade nos ombros de outras pessoas e até do próprio governo. O combate ao vetor não é obrigação do governo. Isso é uma obrigação nossa. Quando vou olhar o vaso de plantas da minha casa, a caixa d’água, um tambor onde armazeno água porque não tenho água suficiente. Jogar lixo nas ruas, resíduos, frascos, garrafas, pneus, sofás... Não adianta falar que a prefeitura não recolhe. Ela recolhe, mas no dia seguinte a montanha de lixo está igualzinha. Cada um de nós precisa fazer o que é necessário. Hoje, está sendo propagandeado que o agente de saúde pode entrar na residência. Essa lei existe há 15 anos. Foi proposta dentro de uma das ações do Programa Nacional de Controle da Dengue. O que acontece é que ela nunca foi aplicada. Precisamos parar de discutir essas questões. O Estado tem que exercer o seu poder e isso não é ser autoritário. Isso é cumprir a sua responsabilidade perante a sociedade. Agora, a sociedade tem que entender isso também. A pessoa que deixa uma laje cheia de água tem que entender que se a polícia entrar e multar, age corretamente, pois ela está pondo em risco não apenas a sua saúde, mas a de um conjunto de pessoas.

 

E. O senhor acredita que o surgimento de dois novos vírus no país, transmitidos pelo mesmo vetor da dengue, amadureça a questão do combate pela população?

M.B. Do ponto de vista de que as pessoas “se acostumaram” com o problema da dengue, o zika é uma vantagem. Foi um fato novo que voltou a despertar a atenção da sociedade e do governo para o controle do Aedes aegypti. O que está errado é que esse fato está sendo usado politicamente. Essa história de colocar guarda municipal, polícia militar e exército nas ruas, renumerando o pessoal, é propaganda política e não ação efetiva. Não adianta colocar 500 mil homens na rua para combater focos do mosquito, porque, 15 dias depois, surgirão os mesmos focos. Por isso, o Brasil abandonou a proposta de erradicação. A proposta é de controle. E controle implica ações permanentes, organizadas, com eficácia e efetividade, com distribuição e atribuições de responsabilidades entre todos os atores da sociedade. O resto é tapar o sol com a peneira. O zika é foco da mídia agora devido a ser um vírus novo e também em razão da microcefalia. Tivemos cinco mortes pelo zika. Já pela dengue foram quase 850, somente em 2015, e não teve o destaque da imprensa como deveria.

Casos de dengue e óbitos pela doença no Brasil (1990 a 2015) - dois gráficos mostram como o número de casos e óbitos vem aumentando ao longo dos anos
Fotografia em zoom de vários mosquitos

Breve histórico dos vírus da dengue, zika e chikungunya

Dengue

Transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, a dengue é uma doença viral que se espalha rapidamente no mundo. De origem espanhola, dengue significa melindre ou manha, referindo-se justamente à fraqueza e debilidade causada pela doença.

Nos últimos 50 anos, a incidência aumentou 30 vezes, com ampliação da região geográfica afetada para novos países e, na presente década, para pequenas cidades e áreas rurais. É estimado que 50 milhões de infecções por dengue ocorram anualmente e que aproximadamente 3,5 bilhões de pessoas morem em países onde a dengue é endêmica.

Nas Américas, a doença tem se disseminado com surtos cíclicos ocorrendo a cada 3 a 5 anos. No Brasil, a transmissão vem ocorrendo de forma continuada desde 1986, intercalando-se com a ocorrência de epidemias, geralmente associadas com a introdução de novos sorotipos em áreas anteriormente indenes ou alteração do sorotipo predominante. Os maiores surtos no Brasil ocorreram em 2013, com aproximadamente 1,3 milhão de casos notificados, e em 2015, com mais de 1,6 milhão de infectados que levou a 863 óbitos, o que representa um aumento de 82,5% em comparação ao ano anterior. Atualmente, circulam no país os quatro sorotipos da doença: DENV-1 (93,8%), DENV-2 (0,7%), DENV-3 (0,4%) e DENV-4 (5,1%).

Em mulheres grávidas, a infecção congênita não ocorre com frequência, mas é importante ficar atento aos riscos, como abortamento, óbito fetal e baixo peso ao nascer.

Zika

O zika vírus (ZKV) tem sua origem na floresta de Zika, perto de Entebbe (Uganda), onde foi isolado pela primeira vez, em 1947. Até o momento, são conhecidas e descritas duas linhagens: uma africana e outra asiática. Embora a primeira evidência de infecção humana pelo ZKV seja de 1952, o vírus permaneceu relativamente desconhecido até 2007.

O principal modo de transmissão ocorre por vetores. No entanto, está descrita na literatura científica a ocorrência de transmissão ocupacional em laboratório de pesquisa, perinatal e sexual, além da possibilidade de transmissão transfusional. Mais de 80% das pessoas infectadas não desenvolvem manifestações clínicas. A doença por vírus zika é descrita como uma doença febril aguda, autolimitada, com duração de 3 a 7 dias. 

Recentemente, foi observada uma possível correlação entre a infecção e a ocorrência de síndrome de Guillain-Barré (SGB) em locais com circulação simultânea do vírus da dengue. O aumento do número de recém-nascidos com malformações congênitas, particularmente a microcefalia, ocorrido em 2015 no país, tem sido associado à infecção pelo ZKV nos primeiros meses de gestação. Até janeiro desse ano, cerca de 3,8 mil crianças haviam nascido com microcefalia no país.

Chikungunya

É uma doença infecciosa febril, causada pelo vírus chikungunya (Chikv), que pode ser transmitida pelos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus. O termo chikungunya significa tornar-se dobrado ou contorcido, em referência à aparência curvada dos pacientes, motivada pelas intensas dores articulares e musculares.

O vírus circula em alguns países da África e da Ásia. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde o ano de 2004, o vírus já foi identificado em 19 países. Naquele ano, um surto na costa do Quênia propagou o vírus para Comores e outras ilhas do oceano Índico, chegando, em 2006, à Índia, Sri Lanka, Maldivas, Cingapura, Malásia e Indonésia. Nesse período, foram registrados aproximadamente 1,9 milhão de casos – a maioria na Índia. 

Em 2007, o vírus foi identificado na Itália. França e Estados Unidos também registraram casos em 2010, mas sem transmissão autóctone (quando a pessoa se infecta no local onde vive). Recentemente o vírus foi identificado nas Américas.

Em 2014, foram notificados 3.657 casos autóctones suspeitos da doença. Em 2015, esse número chegou a quase 21 mil. Destes, 7,8 mil foram confirmados, com três óbitos. 

A transmissão do vírus de mãe para filho na gravidez é incomum. Mas se a gestante for infectada no período próximo ao parto, o bebê pode apresentar sintomas da doença e manifestações graves (em até 50% dos casos). Entre os casos graves, a maioria envolve danos ao sistema nervoso central, complicações cardíacas e na pele (bolhas).

 

Fontes: 

Ministério da Saúde (MS); 

Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS); 

Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC);

BRAGA, Ima Aparecida; VALLE, Denise. Aedes aegypti: histórico do controle no Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 16, n. 2, p. 113-118, abr/jun. 2007. Disponível em: <http://scielo.iec.pa.gov.br/scielo.php?pid=S1679-49742007000200006&script=sci_arttext>. Acesso em: 31 mar. 2016.

Publicado em Edição 06
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